A discussão tem atingido todas as esferas da produção cultural brasileira, mas encontrou dois antagonistas principais: de um lado, o Ministério da Cultura (MinC) pôs em consulta pública uma nova proposta de Lei de Direito Autoral, atualizando regras vigentes desde 1998; do outro, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), entidade formada por dez associações musicais que representam 245 mil artistas, vem se manifestando duramente contra as mudanças. Os principais pontos dissonantes envolvem uma supervisão do governo no próprio Ecad, a possibilidade de se autorizar reproduções mesmo sem o consentimento do detentor do direito em casos específicos e a relação dos herdeiros com as obras.
Em entrevista ao Globo, Glória Braga, superintendente executiva do Ecad, e Marcos Souza, diretor de Direitos Intelectuais do MinC, avaliam as críticas e explicam suas discordâncias.
Souza afirma não entender as razões de o Ecad tanto se opor à supervisão do governo. Glória, por sua vez, afirma que a redação da proposta de lei é falha.
Até a semana passada, a consulta pública havia recebido mais de duas mil sugestões de alterações em seu texto.
O MinC, então, resolveu ampliar o prazo do fim de julho para 31 de agosto.
Depois, cada uma dessas sugestões será avaliada e poderá integrar o texto.
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Ecad diz que sugestões não foram ouvidas
Quando o governo procurou o Ecad para conversar sobre a proposta da nova lei?
Glória Braga – O governo nunca procurou o Ecad para discutir a lei. Há cinco anos, o governo começou a organizar fóruns e nós fomos chamados a participar das discussões.
Nós falamos e nós ouvimos. Depois, eles fizeram encontros abertos ao público, e passaram a ideia de que havia se chegado a uma proposta. Foi aí que começou a confusão. O que dissemos não foi levado em consideração. A impressão é que eles já tinham uma receita pronta.Existe uma opção do MinC e essa opção não é em favor dos direitos dos criadores.
É em favor de quem?
G.B. – Em favor de coisas como o maior acesso do povo à cultura. Nenhum artista é contra o acesso do povo à cultura. Mas cabe ao Estado criar políticas públicas para isso, não cabe ao Estado dizer aos criadores que eles têm que abrir mãos de seus direitos.
No caso de um herdeiro não querer que a sociedade tenha acesso ao que o artista fez, por exemplo, será que o Estado não deveria poder intervir, como sugere a nova proposta de lei?
G.B. – A regra é que, durante 70 anos após a morte de um artista, os herdeiros decidem. É um bem, e é o único bem que tem um prazo de validade. A sociedade precisa ter direito de acesso a isso? Claro que sim. Mas não é o criador ou seu herdeiro que tem que abrir mão disso. Eu não sou contra a difusão cultural, mas a gente não pode matar a galinha dos ovos de ouro para os criadores. A Cacilda Becker dizia: ‘Não me peça para dar de graça a única coisa que eu tenho para vender.’
Qual é o problema na proposta de o governo supervisionar o Ecad?
G.B. – Nos países anglo-saxões, toda a discussão é em torno dos preços, e há tribunais para regular isso. Em outros, como Brasil, França ou Argentina, você pode nem chegar à discussão do valor, porque o uso da música pode não ser autorizado. Em alguns desses casos, também existe supervisão, mas é porque há associações únicas. Já o Brasil tem dez associações de música. Amanhã podem ser 12, 15, quantas quisermos. O Estado não interveio, e elas foram criadas, todas feitas pelo esforço de seus associados. Os artistas são donos das associações, e as associações são donas do Ecad. Não há razão para intervir nisso.
Mas uma supervisão do Estado não poderia ser importante para proteger a idoneidade na arrecadação?
G.B. – Que o MinC, então, venha nos dizer que quer supervisionar o Ecad para tomar conta do preço do direito autoral. Mas não venha nos dizer que quer supervisionar para proteger os artistas, porque estará chamando os artistas de débeis mentais. E você acha que a gente vai defender a supervisão para beneficiar os usuários? Para quê? Para ajudar? Para ajudar eles deveriam escrever uma lei direito. No ano passado, R$ 33 milhões deixaram de ser distribuídos por inadimplência de rádios. Quanto a isso, o Estado não faz nada.
Por que quatro associações não têm direito a voto dentro do Ecad?
G.B. – Essas quatro que não têm voto representam menos de 6% do universo distribuído. Dentro do Ecad, elas fizeram um estatuto em que têm direito a voto as fundadoras e as que congregam o maior número de associados. É natural que, dentro de uma estrutura como a nossa, alguns tenham votos, e outros, não.
Existe uma percepção negativa do Ecad na sociedade. Ao que a senhora atribui essa percepção?
G.B. – A música está em todos os lugares. Temos 400 mil usuários cadastrados que têm que pagar direito autoral. E a gente cobra de todo mundo. Quem cobra tem uma percepção negativa.
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MinC admite alterar a redação da proposta de lei
Quando o governo começou a planejar as mudanças na Lei de Direito Autoral? Os setores foram ouvidos?
Marcos Souza – Tendo em vista as reclamações recorrentes contra aspectos da Lei de Direito Autoral em vigor, o MinC lançou o Fórum Nacional de Direito Autoral em 2007. Ao longo de dois anos, foram promovidas mais de 80 reuniões, além de oito seminários em três regiões. Cerca de dez mil pessoas participaram dos debates, que foram transmitidos pela internet. Somente com as entidades de gestão coletiva da área musical foram feitas várias reuniões, e seus representantes estiveram presentes nos eventos. No seminário sobre gestão coletiva, eles participaram como palestrantes de todas as mesas.
Algumas entidades reclamam que o projeto aumenta as possibilidades do uso de obras protegidas sem autorização dos titulares. Há uma referência ao uso livre para fins de ‘recurso criativo’. O que seria ‘recurso criativo’?
M.S. – As chamadas limitações fazem parte do direito autoral e estão previstas em todos os acordos internacionais. Elas visam a equilibrar os interesses do autor com os da coletividade.
Quanto à expressão ‘recurso criativo’, temos recebido muitas críticas e cogitamos aperfeiçoá-la. Para muitos, essa possibilidade já está de certa forma contemplada na lei em vigor. A intenção foi trazer para a legalidade linguagens artísticas como o ready made nas artes visuais, ou o rap e o hip hop na música, que usam obras pré-existentes para novas criações.
Em seu artigo 52, o projeto diz que o presidente pode ‘conceder licença não voluntária (…) quando o autor ou titular do direito de reprodução, de forma não razoável, recusar ou criar obstáculos ao licenciamento’. O que significa ‘forma não razoável’?
M.S. – O princípio de razoabilidade está presente nas leis modernas, como o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. No artigo 52, a licença não voluntária diz respeito à oposição de algum obstáculo não razoável à exploração da obra por terceiros ou à licença para reprografia. No primeiro caso, a intenção foi tratar dos obstáculos impostos por alguns poucos herdeiros em obras de artes visuais e na literatura. Já no segundo, buscou-se garantir que o capítulo das cópias reprográficas não fosse inviabilizado pela recusa ou por cobranças exorbitantes por parte dos titulares das obras literárias em licenciar as cópias. Nunca se cogitou aplicar o dispositivo para obras musicais. Uma nova redação pode deixar isso mais claro.
Qual é a importância de se supervisionar as entidades de gestão coletiva, como o Ecad?
M.S. – Ela é necessária para garantir a transparência do sistema, aumentar a sua legitimidade. Ao se atestar a idoneidade das práticas dessas entidades, a inadimplência é fortemente dissuadida. É uma prática usual na grande maioria do mundo democrático. A resistência a isso aqui no Brasil é intrigante. O que está no texto proposto não é nada muito diferente do que existe na maioria das legislações dos países democráticos de tradição jurídica continental.
Como o governo enxerga a mobilização da classe artística contra a proposta?
M.S. – Não percebemos uma ‘mobilização da classe artística’ contra a proposta. Há setores que se mobilizaram contra, mas também há outros setores da classe artística que se mobilizaram a favor. Acontece que, por conta de um alarmismo que foi maldosamente difundido de que o governo iria estatizar direitos, liberar o download na internet e outras acusações sem qualquer fundamento, muitos se assustaram e se posicionaram contrários antes mesmo de ler a proposta. Em geral, quando ocorre o debate, reconhecem a importância das mudanças, ainda que rejeitem alguns pontos. Assim é o debate democrático.