A mídia conservadora tem dois pesos e duas medidas em relação às desigualdades sociais. Quando o assunto é noticiar sobre as camadas subalternas sofridas, que aceitam conformados as soluções que vêm de cima, o espaço de imagens, comentários e até reportagens em programas rurais é bem maior do que a informação reservada aos menos submissos, que soltam a voz da cidadania e protestam em atos públicos.
Basta lembrar o noticiário de quarta-feira 03 de março do Jornal Nacional (TV Globo) e se terá a confirmação de tal ambivalência. Com efeito, vê-se o ato político dos campesinos sendo noticiado em modo protocolar, com meia dúzia de frases sem qualquer cobertura que mostrasse a realidade e o valor dos campesinos não conformados às migalhas dos programas oficiais (leia ‘O movimento Via Campesina protestou contra a plantação de produtos transgênicos‘).
Não se pense que o critério seja o suposto desinteresse do assunto. Não! A mídia conservadora faz a política da burguesia de modo competente e sutil. Ao minimizar o ato coletivo dos campesinos, tratou-se de esconder a dimensão crítica sobre a tentativa das transnacionais em apoderar-se dos sistemas de alimentação e a agricultura em todo o mundo.
Transnacional quer subsidiar semente de soja
Aproxima-se o dia 17 de abril, em que se aviva a memória dos 19 campesinos brasileiros massacrados quando defendiam seu direito de produzir alimentos e exigiam acesso à terra para o plantio. Desde esse massacre, que sucedeu em Eldorado dos Carajás, todos os anos se organizam mobilizações sociais em todo o mundo para clamar a soberania alimentar e o direito campesino de produzir alimentos.
Mas não é tudo. Como se sabe, o ano de 2009 encerrou com três cúpulas internacionais: a que tratou da Seguridade Alimentar, realizada em Roma pela Organização Mundial da Agricultura e Alimentação (FAO); a Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra; e, finalmente, a cúpula das Nações Unidas sobre o Clima, em Copenhague.
Em cada um desses eventos as transnacionais mostraram sua determinação em controlar os sistemas alimentícios e de agricultura, os mercados, a terra, as sementes e a água em escala mundial. Transnacionais como Monsanto, Cargill, Archer Daniel Midland e, enfim, Nestlé, assistiram àquelas cúpulas como se fossem frotas equipadas de grupos de pressão, com o propósito de criar políticas subordinadas aos seus interesses.
Por exemplo, a transnacional Monsanto, com base nos Estados Unidos, quer receber fundos públicos para subsidiar sua semente de soja geneticamente modificada para ser resistente. Argumenta, como se sabe, que suas sementes e herbicidas deveriam ser elegíveis para receber créditos de carbono através do mecanismo de desenvolvimento limpo como parte da Convenção sobre Mudança Climática da ONU.
Extrativistas de minerais de baixo custo
A política conservadora da mídia se insere na globalização e, desta forma, tem paralelo na postura das elites européias e nacionais em relação ao salon international de l´agriculture deste ano, em realização até 07 de março (ver aqui) em que le président de la République não comparece para ouvir os atos coletivos, preferindo deixar os campesinos na penúria. Como diriam os amigos do jornal L´Humanité (ver aqui), le président se dore la pilule. Com efeito, a postura presidencial em face do salon international de l´agriculture reflete bem os dois pesos e as duas medidas do conservadorismo atual levando ao descaso que atinge os campesinos no mundo todo.
A política ultraliberal estabelecida prefere gratificar a alta burguesia com demissões sociais e isenções fiscais às grandes sociedades enquanto as categorias campesinas se debatem em meio a uma baixa média de mais de um terço de seus benefícios, resultado da diminuição generalizada dos preços para a produção agrícola. Aos campesinos resta o sofrimento do endividamento e sobre-individamento cada vez mais insuportável.
O ultraliberalismo globalizado elaborado nos cenáculos da Organização Mundial do Comércio e da Comissão de Bruxelas conduz a um impasse. A terra é cada vez mais o objeto de especulação e acantoamento pelos grandes fundos financeiros em detrimento da alimentação básica e do meio-ambiente. Fala-se cada vez mais de valorização ‘não-alimentar’ da produção agrícola.
Ninguém estaria em oposição a essa situação se as necessidades alimentares de cada um fossem satisfeitas, desde que não esgotem mais as terras e se isto permitisse uma produção mais ecológica. É verdade que a agricultura pode ser provida de matérias-primas renováveis, ao contrário do petróleo. Mas a questão do preço para a produção está de todo o modo colocada. Ora, o capitalismo empenha-se em fazer dos campesinos os produtores de matérias-primas de base, espécies de extrativistas de minerais de baixo custo para os setores industriais ligados à alta finança mundial.
Um fórum para o direito à alimentação
Certamente, é a questão da remuneração do trabalho e da soberania alimentar que permanece no centro das diferenças atuais, juntamente com a da natureza da produção agrícola: agrobusiness ou agricultura campesina, sendo esta última que dá a garantia da qualidade alimentar.
Tentar conciliar o progresso científico com a agronomia aplicando por mais indispensáveis que sejam as medidas tais como a diminuição dos encargos ou a concessão de novos empréstimos bonificados não pode constituir um projeto de porvir durável, nem para os agricultores, nem para as multidões de consumidores. Da mesma maneira, fazer crer que a solução reside em um sistema de ‘contrato’ entre produtores e centrais de compra equivale a deixar os campesinos nas garras dos financeiros.
Tais as razões pelas quais o directeur de L´Humanité e député au parlement Européen Patrick Le Hyaric sustenta a indispensabilidade de um grande fórum mundial e um fórum europeu para descobrir as pistas de um novo modelo de desenvolvimento agrícola que seja favorável à qualidade e à soberania alimentar, ao emprego, à vitalização dos territórios, ao meio-ambiente (ver aqui).
Sob a égide da FAO, este fórum poderia vir a ser um fórum mundial para o direito à alimentação para todos os habitantes do planeta. O trabalho agrícola deve ser declarado de interesse geral e público. Tal é a orientação.
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Sociólogo, Rio de Janeiro, RJ