Desde quinta-feira(17/7), quando foi derrubado o avião da Malaysian Airlines sobre a Ucrânia e o exército israelita voltou a invadir Gaza, assistimos nos grandes media ocidentais de impacto global a uma intensa cobertura dos trágicos acontecimentos sob prismas bem diferenciados.
Enquanto no caso do avião a nota dominante é a acusação praticamente aberta de que a responsabilidade – direta ou indireta – é da Rússia, no caso do conflito do Oriente Médio a posição é bem mais cautelosa, colocando-se em pé de igualdade Israel e Palestina – como se as duas realidades se equivalessem e não houvesse de fato entre elas uma total assimetria.
Dois pesos e duas medidas, portanto, em atitudes praticamente opostas, mas ambas alinhadas com as respetivas políticas oficiais – de grande agressividade em relação à Rússia e de grande compreensão em relação a Israel.
No estilo sóbrio que lhe é próprio, a BBC, sem deixar de seguir de uma forma geral essas orientações, tem sido mais discreta; mas a CNN assume-se abertamente como a defensora dos interesses americanos, transformando os seus blocos noticiosos numa quase incessante reunião de estado-maior, em que se analisam as medidas que o país deve tomar.
Medidas bem determinadas, incluindo militares, no caso de resposta à Rússia e conciliatórias no que respeita a Israel, cuja ofensiva bélica, por mais brutal que seja, é sempre vista com alguma leniência, enquadrada no inquestionável direito do Estado judaico se defender.
Sem distanciamento
A estação de Atlanta tem dedicado horas seguidas em dias consecutivos a explorar o tema do avião abatido na Ucrânia, sem nunca lembrar que quer os EUA, quer a própria Ucrânia, já foram no passado responsáveis por acidentes trágicos como aquele que agora ocorreu com o avião malaio: em 1988, a marinha norte-americana abateu no estreito de Ormuz um avião iraniano com 290 pessoas a bordo e, em 2001, o exército ucraniano derrubou um avião russo com 64 passageiros e 12 tripulantes.
Os painéis de comentadores que têm sido convocados para debater o tema não têm tido verdadeiro contraditório e tendem a conferir toda a credibilidade às informações dos serviços de segurança e inteligência ucranianos, hoje estreitamente ligados com os seus homólogos norte-americanos.
Nota dominante – a avalanche de analistas que consideram já os russos culpados e a necessidade de tomar rapidamente medidas fortes contra Moscou – desde sanções económicas “para doer” até apoio militar ao governo de Kiev. Outra ideia veiculada nesses debates – a de que este é o momento para a Europa se juntar à cruzada contra o Kremlin, como querem Washington e os seus mais próximos aliados. O primeiro ministro britânico deu aliás o tom: “É hora da Europa mostrar os dentes à Rússia”.
A julgar por estas intervenções, em Washington existe ou está em vias de se formar um consenso bipartidário no sentido de aproveitar a tragédia do avião abatido para intensificar a política de isolamento de Vladimir Putin, tentando aproveitar a comoção gerada pelo acontecimento para levar atrás de si os até agora relutantes países europeus.
Que o governo norte-americano o faça, até se compreende. Está no seu papel. O que espanta, em termos jornalísticos, é que uma cadeia com a importância e a responsabilidade da CNN se preste a atiçar o fogo sem aquele mínimo de distanciamento que as regras básicas da profissão exigem e o trágico exemplo do Iraque aconselharia.
Debate plural
Em termos substanciais, infelizmente, é pouco provável que a comoção gerada pelo incidente do avião e pela invasão de Gaza venha a curto prazo alterar as situações no terreno como alguns, mais otimistas, parecem esperar.
Se bem conheço a Rússia, o Kremlin não aceitará uma derrota completa das forças pró-russas na Ucrânia e no caso do avião tenderá a seguir aquela que é a tradição histórica da burocracia política do país – negar e silenciar. E no Oriente Médio o impasse prosseguirá, por mais mortos que as cíclicas ofensivas de Israel provoquem. Enquanto permanecerem as condições opressivas em que vivem os palestinos, sempre surgirão forças que se irão rebelar.
Quer num caso como noutro, os grandes media internacionais desempenhariam entretanto melhor a sua função se em vez de alinharem com as versões oficiais assumissem posições mais distanciadas, contribuindo para um debate sério e plural sobre os diferentes conflitos, na busca de soluções negociadas capazes de garantir a paz e não provocar a guerra.
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Carlos Fino é jornalista português, autor de A guerra ao Vivo (Verbo Brasil), ex-correspondente internacional da RTP em Moscou, Bruxelas e Washington. Cobriu a queda da União Soviética, o lançamento do euro e alguns dos conflitos armados mais importantes de final do século 20 e início do século 21: guerra civil da Geórgia, primeira guerra da Chechênia, conflito do Nagorno-Karabakh, Trans-Dniéstria, Afeganistão, Albânia, Palestina e Iraque. Primeiro jornalista do mundo a transmitir imagens ao vivo sobre o início do bombardeio americano a Bagdá. Foi conselheiro de imprensa da embaixada de Portugal em Brasília (2004-2012), cidade onde atualmente reside