Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Doses diárias de ansiedade e angústia

Fala-se muito em liberdade de imprensa, mas pouco em democratizar o acesso a esta liberdade. Propõe-se uma revolução para melhorar o mundo desde que esta não coloque em risco o status quo, o estabelecido (establishment). Há que se revolucionar… mas apenas no sentido de mão única: consagrar direitos adquiridos, reforçar conquistas históricas, enfim, manter a partilha tal como está. Compartilhar qualquer outra coisa pode. Mas não aquelas que realmente importam. E não é equivocado afirmar que lutar pela liberdade de imprensa é permitido desde que não conflite com aquela liberdade maior: a de empresa. Nos dias de hoje, o campo da comunicação, e especificamente o midiático (ou seja, mediado por um aparato técnico-social), alcançou não apenas sua independência como passou a fazer o meio de campo com as demais áreas sociais.


A ‘Idade Mídia’ em que vivemos guarda traços inconfundíveis que remete à Idade Média. Um deles é a intolerância com a diversidade de pensamento, com a liberdade de opinar. Pode-se lutar por liberdade de imprensa, mas não pela liberdade de opinião. E assim todos conquistam o direito de falar, mas alguns poucos alcançam o estágio seguinte, o direito de ser ouvido. E então temos veículos de comunicação que atuam como meros instrumentos da política sem, no entanto, arcar com o ônus de impor sua própria gramática. É com esta ‘gramática’ que os políticos têm que negociar. Uma gramática que ousa e considera lídimo confundir um anão com uma criança como se não entendesse que ambos têm o mesmo tamanho mas são muito diferentes.


Os movimentos sociais – fonte de oxigênio para uma sociedade que se pretenda em constante evolução – sentem-se legitimados, reconhecidos como forças impulsoras para a diminuição de gritantes desigualdades sociais, desde que sejam retratados de forma justa ou ao menos tenham sua presença percebida nas estruturas de comunicação.


Planeta em transe


Mas existem dois tipos de movimentos. Um é aquele que anseia por instrumentalizar os meios de comunicação. São os movimentos tradicionais, os que já ultrapassaram há muito a busca pelo reconhecimento, pelo lugar de interlocução em sua esfera de atuação. Outro tipo de movimento personifica objetivos eminentemente midiáticos e encontram sua força no campo da estética e do espetáculo, no jogo da imagem, seja fabricando-as, seja repercutindo-as. Refiro-me aos movimentos que lutam contra a precariedade das condições de vida, que erguem barricadas em defesa de minorias flutuantes, estas que o processo de exclusão social produz ininterruptamente.


Atuando como instância autônoma de poder encontramos a imposição sem meios-termos de valores universais centrados no consumo e na violência. Ou seja: você é o que possui. Se nada possui, então você não é. E se a pessoa vem sendo definida por seu poder de compra, seu direito de ser depende dessa mesma capacidade de compra. São coisas imbricadas – é o ser sendo nocauteado pelo ter. O nocaute é tão perverso, a goleada é tão grande que… é como se você fosse dirigido por seu carro, comprado pelo supermercado, programado por seu computador, assistido por sua tevê. E nossa tragédia não é outra que nos transformarmos em ferramentas de nossas ferramentas.


Foram-se os tempos em que as cidades riscavam o solo da realidade como resposta efetiva ao desejo dos humanos de se encontrarem, de se reunirem. As cidades respondiam a esta necessidade: quero encontrar meus amigos; quero estar com outras pessoas.


O tempo atual é outro. As cidades atuais são imensos estacionamentos onde máquinas encontram máquinas e nós, seres humanos, agasalhando no lado esquerdo do peito apenas duas ou três utopias dessas que mostram valer a pena viver, viramos meros intrusos arrastando solidões por entre vendedores aflitos e gôndolas recheadas de tudo o que é supérfluo, mas que nos são apresentadas como se fossem gêneros de primeira necessidade. Como o ar que respiramos, como a água que desperdiçamos de forma ilimitada mesmo sabendo que se trata de um recurso muito limitado de um planeta em transe, não podemos descuidar que este mundo é fanático por classificação, que somos no mais das vezes tratados como insetos e, quem sabe um dia, já não nasceremos com uma etiqueta presa ao corpo?


Guerra e paz


Quem tem o maior poder nos dias que correm de dar voz e de fazer indivíduos e grupos sociais existirem? Resposta: os veículos de comunicação. Quando vemos em telejornal – ou qualquer outro programa de tevê – um indivíduo anônimo sendo focalizado, de duas uma: ou o sujeito é vítima de alguma violência ou então é vítima da luta obsessiva por pontos de audiência, pois com certeza serão enganados, ridicularizados, diminuídos como cidadãos, e até motivo de escárnio dos Boris da vida. Afinal, para que existem as tais pegadinhas senão para fazer exatamente isso?


E, que fazer, meu caro(a) leitor(a), quando legiões de anônimos vivem a vida como se estivessem em uma única e interminável ‘pegadinha’? Na realidade do espetáculo em que somos caricaturados e massacrados em nosso potencial, talentos, habilidades e virtudes… será que não ficaremos roucos de tanto ouvir? (Foi isso mesmo que escrevi: não estamos roucos de falar; estamos roucos de tanto ouvir as tais classes dominantes.) Pode faltar nosso almoço diário, mas nunca nos faltarão doses diárias de violência por meio de notícias, filmes, nas escolas, nas ruas…


Temos uma indústria de entretenimento imersa em oceanos de sangue, com tudo explodindo o tempo todo – carros, pessoas, edifícios. É que vivemos no tempo em que as palavras se embebedam, perdem seu significado. Daí que sabemos que guerras iniciadas e mantidas ao preço de milhares de vidas e bilhões de dólares são travadas em nome da paz. E que o que nossos avós não hesitariam em chamar de ‘ações militares’ são chamadas agora pelo estridente ‘missões humanitárias’.


Um dos mais terríveis paradoxos atuais: é fato que os cinco países com poder de cuidar da paz são também os cinco maiores fabricantes de armas, ou seja, os cinco países que administram o negócio da guerra no planeta são exatamente os mesmos que dizem ter sobre seus ombros a missão sagrada, poética e bela de manter a paz mundial!


Causa mortis


A situação é esta porque a idéia de cidadania vem se perdendo a olho nu. Não dispomos de um poder público que nos lembre que cidadãos é o que somos; que puna os que nos vêm como seres abjetos, subumanos talhados para encenar na vida o teatro do ridículo. A cidadania virá para as minorias quando estas tiverem voz ativa nos meios de comunicação. Mas, obviamente, se alguém falar nisso estará comprando briga com cachorro grande. E no entanto esse é o único jeito de vermos a cidadania como ela é, aquele que pode dar visibilidade a outra imagem nossa que não aquela imagem (estilo moto-contínuo) feita pelos que, ao utilizar os meios de comunicação, sabem que sua palavra tem força de lei.


Portanto, resgatar o verdadeiro espírito de cidadania requer a luta contra o monopólio, a privatização dos veículos de comunicação. E também sua desregulamentação. Enquanto a sociedade não encontrar seu lugar de interlocução com a imprensa estaremos enxugando gelo.


Futuramente, historiadores ao se debruçar sobre os últimos trinta anos encontrarão a causa mortis de nossa civilização: as massas da humanidade comeram e beberam, por longo tempo, doses maciças de ansiedade e angústia.

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Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter