Deu em nada a pressão dos governos argentino e boliviano para o Brasil ceder à Argentina uma parte do gás comprado da Bolívia. Reunido em Buenos Aires com os colegas Cristina Kirchner e Evo Morales, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve a posição anunciada um dia antes pelo presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli: o país precisará de cada molécula do gás de origem boliviana.
O boliviano Morales foi embora sem falar com a imprensa. A chancelaria argentina emitiu um comunicado morno. Lula falou aos jornalistas sobre a importância da cooperação energética na região, mas a política, segundo ele, tem de envolver muito mais do que o gás. Sobrou a promessa brasileira de fornecer eletricidade à Argentina durante o inverno – um compromisso sem novidade.
Assim terminou a conferência presidencial do sábado (23/2), ato final de uma visita de dois dias do presidente brasileiro à Argentina. No dia anterior, Lula a Cristina Kirchner haviam assinado, entre outros, um acordo para constituir uma empresa binacional de enriquecimento de urânio para produção de eletricidade – um projeto de longo prazo.
Ameaça de retaliação
Os grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo noticiaram esses dados brutos, mas contaram, na ponderação dos fatos, duas histórias muito diferentes. O contraste pode ser um bom material para uma discussão sobre os limites e as condições da objetividade na cobertura jornalística.
A diferença é clara nas manchetes publicadas no sábado pela Folha de S.Paulo e pelo Estado de S.Paulo. ‘Brasil e Argentina assinam pacto de cooperação nuclear’, informou a Folha. ‘Brasil rejeita ceder gás boliviano à Argentina’, contou o Estadão.
Uma das coberturas valoriza a idéia de uma estratégia econômica e diplomática de longo prazo. A outra concentra o foco num problema de curtíssimo prazo, a escassez de energia no Cone Sul e a incapacidade boliviana de suprir, sem mais investimentos, o gás necessário ao Brasil e à Argentina. A situação é complicada também no Chile, dependente da Argentina para o suprimento de gás, mas esse detalhe, embora importante, não foi explorado.
O material da Folha, no sábado, avançou pelas possíveis especulações de outros governos a respeito dos objetivos argentinos e brasileiros. Os americanos, lembrou a matéria, queixam-se de o Brasil não haver assinado o Protocolo Adicional ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Esse protocolo permite a inspeção de instalações nucleares sem aviso prévio. O chanceler Celso Amorim, segundo a reportagem, reafirmou as intenções pacíficas (motivado pela pergunta de algum repórter?), antecipando-se a quaisquer especulações sobre o acordo entre Brasília e Buenos Aires.
A própria Folha, na mesma edição, abaixou um pouco a bola, ao reproduzir, em matéria da reportagem local, declarações do físico Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás. A cooperação, segundo ele, poderá proporcionar escala suficiente para baratear os programas nucleares dos dois países, mas não eliminará nenhum gargalo em menos de cinco anos. O físico Oyanarte Portilho, da Universidade de Brasília, citado na mesma reportagem, pôs em dúvida o interesse econômico do acordo para o Brasil. Mas a cobertura, no conjunto, enfatizou o sentido estratégico do acordo e a elevação do debate a um novo patamar.
O Estadão manteve uma perspectiva mais prosaica. Deu menos peso ao acordo de cooperação nuclear e um pouco mais de destaque a outros tipos de solução para a escassez de energia, como a construção da hidrelétrica de Garabi, na fronteira da Argentina com o Rio Grande do Sul. O destaque ficou mesmo para o tema de curtíssimo prazo, a tentativa argentina de obter parte do gás fornecido pela Bolívia ao Brasil. A cobertura do Estadão mencionou também a ameaça, atribuída a fontes do governo argentino, de retaliação à subsidiária da Petrobras, se as autoridades brasileiras não cedessem.
Opinião técnica
No domingo (24), estranhamente, só o Globo, dentre os grandes jornais do Rio e de São Paulo, deu chamada na primeira página para a seqüência da cobertura. No Globo, como na Folha e no Estadão, o material das páginas internas destacou, como era previsível, o prosaico problema imediato. Nenhum outro tema havia tido importância no sábado, na reunião entre Lula, Cristina Kirchner e Evo Morales. De fato, nenhum outro assunto justificava a presença de Morales em Buenos Aires. Mas o contraste entre as coberturas permaneceu e esse é o dado mais interessante para quem pretenda analisar o trabalho dos jornais.
Segundo a Folha, o gás boliviano saiu da agenda de negociações entre Argentina, Brasil e a própria Bolívia ‘para ser substituído por um conceito mais abrangente, o de energia’. Segundo o Estadão, a reunião terminou sem acordo e a presidente da Argentina, mesmo com a ajuda de seu colega boliviano, foi incapaz de convencer Lula a ceder ‘uma única molécula’ dos 31 milhões de metros cúbicos diários contratados com a Bolívia. A matéria ainda citou com destaque um detalhe não valorizado pela Folha: a criação de um grupo de trabalho constituído por ministros dos três países para realizar estudos permanentes sobre as dificuldades energéticas da Argentina.
O Globo, numa perspectiva semelhante à do Estadão, foi mais contundente: ‘Lula diz não à Argentina e desvia foco do gás’, segundo o título principal da página 34. De acordo com a matéria, ‘a decepção foi evidente não só no caso dos argentinos, que pediram um milhão de metros cúbicos de gás mais energia elétrica, mas também entre os bolivianos, que foram a Buenos Aires a convite da Argentina para tentar convencer o Brasil a ceder parte de suas importações’.
As diferenças de ênfase refletem, obviamente, duas percepções da diplomacia regional conduzida pelo PT sob inspiração do assessor presidencial Marco Aurélio Garcia e do secretário-executivo do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães. Uma delas leva a sério o discurso oficial dessa diplomacia. A outra, nem tanto. Sobra um detalhe interessante para uma discussão mais prolongada. Por que o presidente Lula terá decidido, neste episódio, seguir a opinião técnica da Petrobras sobre as necessidades do mercado brasileiro, em vez de ceder politicamente, como noutras ocasiões, às pressões dos vizinhos?
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Jornalista