– O que vocês aprenderam com a cobertura dos acontecimentos, a partir de junho, do ponto de vista de tecnologia, política e sociedade?
A pergunta do mediador David Butter (jornalista com passagens pela Globo e G1) era ampla, mas parecia adequada para suscitar o debate. Dirigida, num debate promovido pelo canal YouPix, aos jornalistas Pedro Dória (editor executivo de O Globo), Rodrigo de Almeida (editor do portal iG), Alexandre Inagaki (blogueiro e consultor de mídias digitais) e Felipe Bressan (Mídia Ninja, Rio), além de Rafucko (videomaker e militante de mídia independente), a questão colocou em confronto, em tese, duas concepções de narrativas jornalistas.
Coube a Inagaki fazer o primeiro apontamento, que daria base para um diálogo fecundo: as diferenças sensíveis entre a narrativa bruta do Mídia Ninja em relação à narrativa da imprensa tradicional (com sua metodologia de apuração, edição e disseminação das informações apuradas). Ele apontou que a narrativa dos repórteres Ninja, engajada e militante, era muito menos interessante que os planos-sequência da imagem bruta dos acontecimentos, em tempo real. Dória divergiu, registrando: “Não existe imagem bruta: um ângulo escolhido para enquadrar uma cena já é uma forma de edição”. Rafucko por sua vez, garantiu que há uma nova forma de se manifestar, do ponto de vista da sociedade, que não depende mais dos intermediários da mídia tradicional.
Para o jornalista Rodrigo de Almeida (iG), as manifestações de junho deixaram dois questionamentos fundamentais: o primeiro é a insatisfação com a forma de representação política da democracia ocidental – fenômeno já registrado em outros países, recentemente – e, o segundo, é quanto ao papel da mídia tradicional na sociedade, especialmente o do jornalista como “filtro ou intermediário” dos acontecimentos. O cenário é de múltiplas vozes, acrescenta com absoluta razão. Almeida faz dura crítica à dispersão da agenda política das manifestações – algo que se revelou decisivo no refluxo que se veria a seguir, combinando-se – é claro – com a falta de qualquer tipo de organização que pudesse sustentar o movimento. A imensa energia mobilizada, sobretudo da juventude que foi e continua indo às ruas, parece ter desaguado numa megacatarse.
O debate esquentou, contudo, quando Felipe Bressan defendeu que a divergência estaria no contraponto “publicização dos fatos” (narrativa Ninja) versus “narrativa jornalística tradicional”, da velha mídia. O enfoque suscitou um enfático contraponto de Pedro Dória, citando o exemplo do PM flagrado plantando provas falsas contra um manifestante, no Rio de Janeiro. Dória admitiu que o cinegrafista da Globo também não vira, na hora da captação da imagem, o ato abusivo do policial (e só iria ver isso no dia seguinte, marcado que fora por uma negativa forte de uma jovem que acompanhava o acusado de portar coquetel molotov); o repórter do Mídia Ninja (que igualmente não observou a ilegalidade) também não viu a cena porque estava ocupado narrando e acusando o policial de abuso de poder – a partir de um ponto de vista preconcebido.
Capa lamentável
O contraponto de Rafucko foi mais veemente ainda. Partindo da retórica de que “flagrante forjado é o que mais tem em manifestação”, o videomaker exibiu a capa do jornal O Globo (edição 17/10/2013): “Lei mais dura leva 70 vândalos para presídios”. Ele considerou como “jornalismo criminoso” porque acusou e prejulgou, uma vez que todos os manifestantes presos foram soltos, a pedido do Ministério Público, no dia seguinte, por falta de provas.
O bate-boca que se seguiu impediu qualquer reflexão mais fecunda sobre os apontamentos até então colocados pelos debatedores. Aliás, sobre essa lamentável capa, escreveu também a jornalista e professora Sylvia Debossan Moretzsohn, no Observatório da Imprensa: “O problema grave foi apoiar uma ação flagrantemente ilegal da polícia, quando a única atitude possível seria denunciar esse abuso, em nome dos valores democráticos que o jornal diz defender.”
Desencontro epistemológico
Colocados em confronto, no terreno das ideias, os representantes da mídia tradicional e Ninja conseguiram produzir tão somente um debate desencontrado. As premissas epistemológicas como “jornalismo independente”, “parcialidade x imparcialidade” e “objetividade” se perderam nos desvãos das retóricas de ocasião.
Para um diálogo fecundo, na minha modesta opinião, faltou a densidade de olhar o Jornalismo para além de uma narrativa ou ferramenta mais ou menos refinada tecnologicamente. Sem encará-lo como uma forma do conhecimento social, fundamentada e legitimada na dimensão factual da existência dos homens em sociedade, os debatedores apenas conseguem tangenciar o senso comum sobre a questão – por exemplo, do mito da “objetividade”. Recordo aqui o que escreveu, em O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, o saudoso professor Adelmo Genro Filho:
“A maioria dos autores reconhece que a objetividade plena é impossível no jornalismo, mas admite isso como uma limitação, um sinal da impotência humana diante da própria subjetividade, ao invés de perceber essa impossibilidade como um sinal da potência subjetiva do homem diante da objetividade.”
Nesse sentido, a vergonhosa capa de O Globo (17/10/2013) é tão vexatória, do ponto de vista de prejulgamento e da inexistência absoluta do interesse público, quanto o perfil da Mídia Ninja SP, no Facebook. O fato agora é a agressão sofrida pelo coronel Reynaldo Simões Rossi, comandante do policiamento da área no Centro de São Paulo (25/10/2013, em manifestação sobre transporte coletivo), um misto de sadismo e covardia – repetindo o modus operandi abjeto e condenável, sobre todos os pontos de vista, da PM paulista (que protagonizou inúmeras cenas dessa natureza). Na página Ninja, o texto ilustrando a foto assinada por Eli Simioni: “E hoje nós conhecemos a força do povo, a ação direta foi sem palavras, quem viu ficou bobo, e quem se meteu a Herói, não foi tratado como tal… Midia Ninja, SP Brazil” (confira a imagem aqui).
Para os movimentos sociais que lutam, e sabiamente usam as redes sociais e a internet em prol das causas populares, talvez este seja o pior dos mundos: imitar, acriticamente e fazendo apologia da violência, o modus operandi da PM paulista, considerada uma das mais sádicas e truculentas do país. Trocar a bandeira da desmilitarização das PMs, nacionalmente, pela “ação direta sem palavras” é um desatino sem par. O final desse tipo de aventura já é razoavelmente conhecido na história política do Brasil – e sempre gerou ditaduras e obscurantismo.
Lentes cúmplices
Resgato, uma vez mais, outro texto pertinente de Sylvia Moretzsohn, no qual a pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) critica outro comportamento que revela a superficialidade com a qual o Mídia Ninja encara o Jornalismo. O fato: a cobertura das manifestações de 7 de setembro e a agressão, de parte dos manifestantes, contra o repórter Júlio Molica, da Globo News. Relata a autora: “Com um celular, Molica documentava ao vivo a movimentação, a gratuidade da violência policial, a correria provocada pelo disparo de bombas de gás. Algumas vezes teve de interromper a transmissão, sufocado pela fumaça tóxica” . O repórter Ninja, que cobria ao seu lado já o avisara antes: “Eu tava falando pra ele ir embora, o cara quer ficar filmando… vai arriscar a vida à toa pela Globo, porra?” Descoberto pelos manifestantes Black Blocs, Molica foi salvo do linchamento por um segurança, um advogado da OAB e uma militante sindical.
Repórteres, sejam da imprensa tradicional ou de coletivos independentes (como o Mídia Ninja), cobrem os acontecimentos em nome do Jornalismo. A perspectiva desses profissionais é a de contar as histórias e testemunhar, analisar e interpretar os acontecimentos, pensando sempre num diálogo com um determinado público, mais difuso ou específico, não importa. Por isso, o direito à liberdade de expressão é vital em qualquer democracia. A imagem do coronel da PM sendo vandalizado pelos Black Blocs paulistas, sob as lentes cúmplices da Mídia Ninja SP, revela muito mais que um equívoco de concepção jornalística. É a reprodução acrítica do sensacionalismo em sua vertente mais condenável: vale, enfim, o espetáculo. Como nas arenas romanas: panis et circensis.
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Samuel Lima é jornalista, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UnB) e pesquisador do objETHOS