Há 24 dias (completados em 21/11), o presidente Lula, recém eleito, declarou solenemente que afinal concederia uma entrevista coletiva. Na ocasião – a festa da vitória em 29/10 – houve um simulacro de coletiva. De mentirinha, não valeu. Dia seguinte uma blitz de declarações ao vivo, nos principais telejornais. Também não valeu.
Entrevista coletiva de um Chefe de Estado faz parte dos ritos democráticos. Não muda nada, tem valor simbólico, mas a democracia, além das suas especificidades institucionais, repousa num repertório de ritos que a qualificam.
No caso do presidente Lula, uma entrevista coletiva
autêntica é muito mais do que um rito. É um dever imperioso, inadiável. Servirá para corrigir uma das falhas gritantes do primeiro mandato e, principalmente, para neutralizar seus ataques e ameaças à mídia iniciados muito antes da descoberta do Dossiê Vedoin pela Polícia Federal.
O presidente Lula, como bom político, sabe reparar brigas antigas e desarmar antigos adversários. Sua admiração por Antônio Delfim Neto (o ex-czar da economia no período em que o líder sindical Lula era o seu mais ferrenho inimigo) é uma prova inequívoca da sua capacidade de erradicar mágoas e fazer amigos.
O mesmo não acontece na esfera da imprensa. Como diria um consultor sentimental, o presidente deve ‘rever a sua relação’ com a imprensa. No seu íntimo, o presidente Lula sabe muito bem que não pode continuar cuspindo nas rotativas que tanto o ajudaram (a metáfora é de um dos fundadores do PT, o deputado Paulo Delgado).
No debate da TV Bandeirantes o presidente parecia curado da sua síndrome anti-mídia. Três semanas depois teve uma recaída. Inspirado talvez por Hugo Chávez ao seu lado, soltou o ressentimento represado.
A relação Lula-mídia é complicada, ambígua, conflitante, com conotações psicológicas e evidentes fundamentos messiânico-ideológicos. O presidente da República não gosta de réplicas, acha que a sua trajetória pessoal não pode ser contestada, seu novo triunfo eleitoral dá-lhe o direito de dizer o que bem entende. Ungido pelo povo, só ele sabe o que convém ao povo.
No Estado Novo, o famigerado DIP foi apelidado pelos jornalistas como o ‘Fala Sozinho’. Nosso presidente jamais imporia uma censura igual à de Getúlio Vargas. Mas incomoda-o ser contrariado e questionado. O jornalista Elio Gaspari apelidou-o de ‘Nosso Guia’, ele o conhece antes mesmo da matéria de capa de IstoÉ em fevereiro de 1978.
Origem dos ataques
Não foi o presidente Lula que iniciou esta cruzada de críticas e intimidações à imprensa: em 2005, Tarso Genro (então presidente interino do PT) produziu uma violenta nota oficial do partido contra a mídia acusando-a de golpista etc. (clique aqui para ler os comentários de Genro sobre a nota, feitos no programa Observatório da Imprensa na TV).
Depois, apareceu o ex-ministro José Dirceu utilizando com grande habilidade a técnica do ataque como arma de defesa para livrá-lo das acusações sobre o seu envolvimento no caso Valerioduto/Mensalão.
Virou moda, era cômodo dizer que o mensalão não existiu, foi invenção da mídia e que o moralismo da mídia era de origem udenista, tudo isto mesmo depois do contundente parecer do Procurador Geral da República sobre a ‘organização criminosa’ que operava o esquema. E como a imprensa cometeu algumas leviandades pontuais (os dólares de Cuba, por exemplo) era fácil desacreditá-la liminarmente.
A idéia de levar a mídia aos palanques para ser continuamente malhada e desmoralizada foi um recurso tático destinado a prevenir eventuais denúncias da imprensa na reta final, pouco antes do primeiro turno.
Então veio o Dossiê Vedoin e o tiro que deveria ferir mortalmente o candidato José Serra converteu-se no mais desastrado tiro no pé da nossa história política. Inventou-se finalmente o ‘complô da mídia’ forjado pela imprensa dita engajada para diminuir os seus efeitos. A verdade é que na trajetória de Luiz Inácio Lula da Silva há uma zona cinzenta que corre o risco de parecer preta.
Difícil prever como o presidente Lula conseguirá reencontrar a naturalidade perdida no trato com a imprensa. Alguns dos seus conselheiros na área política recomendam uma mudança imediata, pois o esforço para atrair o PMDB pode esboroar-se caso persista a atual tensão entre o Executivo e o chamado Quarto Poder.
Convém ter em conta que alguns próceres do PMDB são poderosos barões da mídia em seus respectivos currais. Não pretendem abrir mão dos seus privilégios nem alterar o status quo em matéria de concentração dos meios de comunicação. E isso é exatamente o que se espera de um governo cujo partido clama pela democratização dos meios de comunicação.
Os principais auxiliares da Presidência na área jornalística não estão felizes: alguns já deixaram o governo, outros apenas colocaram os cargos à disposição e outros já decidiram formalizar a sua saída. Sem eles, a ciclotimia pode agravar-se e converter-se em mania de perseguição.
Uma entrevista coletiva poderia desanuviar os ânimos, mas também pode agravá-los. Jornalistas querem saber, não para pautar o governo (como acusou o irritado professor Marco Aurélio Garcia), mas porque têm a obrigação de fazer as perguntas que a sociedade exige deles.
Numa entrevista coletiva verdadeira, os repórteres não poderão deixar de lado problemas cruciais e gritantes como o ‘apagão aéreo’ (e sua implicação com a tragédia do Boeing da Gol) e a lentidão das investigações da Polícia Federal sobre a origem do dinheiro do Dossiê Vedoin. Tais perguntas exigirão respostas claras do entrevistado. Ou réplicas insistentes dos entrevistadores.
A tal ‘relação’ que já é precária pode deteriorar-se ainda mais. Isso talvez explique a demora em cumprir a promessa anunciada de maneira tão eufórica na noite de 29 de outubro.