O jornalismo mundial está numa encruzilhada de lascar. Ele já não sabe mais a quem serve. Se aos leitores, ouvintes ou telespectadores ou às corporações e a suas teias de interesses políticos, ideológicos, financeiros etc. Uma coisa parece certa: não dá para servir a todos sem algum tipo de prejuízo. E como a divulgação de informações é fundamental para qualquer sociedade, mais ainda nas democráticas, a imprensa está numa grande ‘sinuca de bico’. E não é de agora. Já faz um bom tempo, mas alguns fatos mais recentes deixaram mais clara esta situação.
Talvez a Guerra do Vietnã tenha sido o último momento da chamada imprensa livre. Quando o jornalista americano Walter Conkrite, âncora do programa de televisão CBS Evening News, passou a mostrar cenas reais da guerra e se posicionou publicamente contra o conflito no Sudeste asiático, alguma coisa começou a mudar no cenário norte-americano. O desfecho é conhecido. Os EUA perderam a guerra, criando a ‘síndrome do Vietnã’, que de alguma forma, impediu, por algum tempo, novas investidas militares dos americanos mundo afora. Até Ronald Reagan.
Reagan, presidente republicano, aos poucos foi devolvendo aos EUA confiança militar para intervenções. Começou na América Latina – Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Ilha de Granada – com amplo e maciço apoio da mídia americana. Sua cruzada contra as ‘forças do mal’, representadas pelos comunistas, foi amplamente divulgada pela imprensa americana e mundial, em que pesem suas negociações com o primeiro-ministro da União Soviética, Mikhail Gorbatchev, chefe supremo do que, então, Reagan alcunhou de ‘Império do Mal’. O desfecho também é bem conhecido. No início da década de 90, a URSS, o maior adversário político, econômico e militar dos EUA, deixou de existir.
Mudou o cenário mundial, as sociedades do bem-estar social, criadas para fazer frente ao comunismo e suas benesses sociais, acabaram, dando lugar ao crescimento do neoliberalismo na economia, na política, nas relações sociais e, também, na mídia. Não havendo mais o contraponto comunista, a mídia ocidental passou a nadar tranqüila, sofisticando mais ainda suas manipulações, mentiras e censuras. A ligação orgânica entre a mídia e o poder, democrático ou não, aos poucos foi se tornando mais clara e forte.
Demônios a abater
Na guerra da Iugoslávia, 1989-2001 – Balcãs europeu –, que resultou na divisão do país em vários outros (ex-Iugoslávia, Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Voivodina, Sérvia, Kosovo e Macedônia), a mídia conseguiu passar ao resto do mundo uma história de genocídio que não existiu. Uma guerra de conquista, por parte dos EUA e alguns países europeus, para garantir o fluxo de petróleo e gás, virou um conflito étnico, no qual sérvios queriam eliminar muçulmanos e bósnios, numa matança sanguinária semelhante à da Alemanha nazista. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), entidade militar aliada criada na Europa do Pós-Guerra para enfrentar militarmente os soviéticos – sem ter muito o que fazer com a dissolução do Pacto de Varsóvia, entidade militar soviética formada pelos países comunistas para enfrentar a Otan, assumiu a intervenção militar na Iugoslávia com o ‘objetivo’ de salvar vidas do massacre em andamento. Com isso, depois de mais de 10 anos de lutas, a Iugoslávia deixou de existir como nação e a Otan passou a controlar a região.
E tudo isso aconteceu ali, no continente europeu, numa região do mundo considerada civilizada e avançada. A verdade dos fatos só recentemente começou a ser divulgada, mesmo assim pela imprensa alternativa mundial, através da web, em documentários para tevê ou cinema esparsos, alguns livros de jornalistas e intelectuais que presenciaram ou estudaram o acontecido. Na grande imprensa, quase nada, mesmo sendo otimista.
Na mesma toada, a grande manipulação da mídia mundial deu prosseguimento com a Guerra do Golfo, a primeira invasão militar ao Iraque, em 1990-1991. Sob o suporte político da ONU, os americanos lideraram uma força militar internacional e partiram para cima dos iraquianos. A justificativa foi a invasão do Kuwait pelas forças armadas do Iraque. Na realidade, sabe-se hoje, o motivo real do conflito foi porque Saddam Hussein, ditador do Iraque, estava ‘pondo suas manguinhas de fora’. Entre algumas das suas atitudes estava a de fortalecer militarmente o Iraque para fazer frente ao poderio militar de Israel. A intenção de se transformar numa liderança árabe local forte e assim apoiar os movimentos palestinos e árabe de maneira geral não agradou aos países do Primeiro Mundo, tão necessitados do petróleo do Oriente Médio.
Mas a mídia transformou o Iraque e Saddam Hussein em demônios a serem abatidos. Dez anos depois, com o 11 de Setembro, outra vez os EUA lideraram uma invasão militar contra o Iraque. Com amplo e maciço apoio da mídia americana, o governo dos EUA mente, inventa histórias da existência de armas de destruição em massa no país árabe, que Saddam tinha ligações com terroristas da al-Qaida etc. A história é bem conhecida, assim como a vergonhosa e covarde manipulação que a grande imprensa americana fez, e ainda faz, para justificar a invasão e a ocupação militar do Iraque. Nada a acrescentar…
E a investigação?
O Irã, outro país do ‘eixo do mal’, começa a sofrer o mesmo processo de mentiras e manipulações para justificar algum tipo de atitude manu militari dos países do Primeiro Mundo. Tem chão pela frente, mas o caminho é bem conhecido, as trilhas estão bem marcadas e o procedimento é velho conhecido da grande mídia.
Ao mesmo tempo, na sangrenta rebelião que acontece no Iraque, onde grupos armados lutam contra a ocupação anglo-americana, assiste-se a uma série de atentados entre sunitas e xiitas, criando-se a fantasia de uma iminente guerra civil. Aliás, algo que a administração Bush busca há tempo para garantir ainda mais a ocupação militar e o controle da exploração e da comercialização do petróleo iraquiano. Inúmeras denúncias têm sido divulgadas na web, acusando os EUA de serem responsáveis pelos atentados e matanças indiscriminadas. Mais uma vez a imprensa ‘ocidental’ manipula e mente. Após os atentados a bomba no Iraque, em que dezenas de pessoas morreram e se feriram – especialmente depois do ataque à Cúpula Dourada, milenar mesquita xiita na cidade de Samarra –, as ‘notícias’ veiculadas procuram mostrar um Iraque à beira da guerra civil.
Esta situação vem sendo articulada cuidadosamente pelas autoridades americanas e inglesas desde que a ocupação militar do país começou a fracassar. E para justificar a manutenção de soldados e bases militares, a administração atual tem apostado (ou incentivado, segundo alguns jornalistas, como o britânico Robert Fisk) na eclosão de uma guerra civil entre xiitas e sunitas. Afinal, alguma coisa precisa ser feita para que a população iraquiana, cada vez mais contrária à ocupação militar, passe a apoiar a manutenção das tropas invasoras no Iraque. Fomentar as diferenças existentes entre sunitas e xiitas, sem falar nos curdos, além de responsabilizar a al-Qaida na figura do líder al-Zarqaui – aquele que existe mas ninguém sabe onde está, se está vivo, se é real – pelos atentados tem sido a tática mais usada no momento. Pela web é possível saber que, antes do atentado à mesquita de Samarra, segundo testemunhas, membros da Guarda Nacional do Iraque e tropas americanas, durante o toque de recolher, se movimentaram perto da mesquita. Pouco tempo depois, as duas explosões. Coincidência? Pode ser, mas cadê a esperada investigação da imprensa para saber o que realmente aconteceu, em vez de apenas reproduzir os releases oficiais e lhes dar tratamento de notícia? Pura farsa…
Na escuridão da ignorância
Estes momentos históricos, sucintamente descritos, representam apenas alguns exemplos da atual situação da imprensa mundial. Claro que há muito mais exemplos em todos os lugares, inclusive no Brasil, mas fica mais evidente que a mídia perdeu a luta contra a censura, a manipulação, a mentira, cedendo espaço à propaganda e ao marketing, tudo travestido de imprensa livre. As corporações, as grandes empresas que controlam a mídia são amplas, controlam várias outras atividades econômicas, com algumas exceções. Os interesses em jogo são muito grandes, para elas e para as outras empresas que formam a grande teia mundial, o chamado mundo globalizado. Nessa ‘nova’ realidade, não há mais lugar para a ética, a responsabilidade social da imprensa, para o equilíbrio ao ‘contar uma história’.
O papel estratégico da comunicação no mundo moderno é cada vez mais evidente. É preciso controlar as mentes, os corações, as almas das pessoas sob a justificativa de se preservar a liberdade de imprensa, e é exatamente ela quem mais está sofrendo. Não existe mais liberdade de imprensa, porque não existe mais imprensa livre. O controle ainda não é total porque existem resistências. Jornalistas e alguns veículos teimam nesta luta de resguardar o pouco do que resta de liberdade, de justiça, de ética, moral, respeito, responsabilidade, equilíbrio.
Deixando de lado o romantismo desta luta, do apego que muitos ainda têm pela veiculação dos fatos como eles acontecem, da atitude de não deixar cair o bastão, de não ‘entregar a rapadura’, o que se pode esperar é muita luta. Com certeza, o leitor, o ouvinte, o telespectador criado sob o manto da imprensa livre aos poucos vai deixar de lado a fidelidade aos veículos de imprensa e procurar outras maneiras de se informar. Mas, os que estão começando, que não tiveram outra formação, que não conheceram outra realidade que não esta de agora, manipulada, censurada, estes correm o risco de nunca mais verem o ‘sol nascer no horizonte’. Ficarão na ‘escuridão da ignorância’, da informação falsa e dirigida, do fascínio do consumo de mercadorias pretensamente livres, acreditando nessa liberdade vigiada e nas falsas informações divulgadas. É uma encruzilhada e tanto, a da imprensa de hoje. Quem viver, verá…
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Jornalista