Marshall McLuhan dizia que eletricidade é a informação em estado puro. Pois ouso afirmar que o morto, em sua impalpável energia, é a informação em estado puríssimo. O morto está, sem precisar ser. Ao mesmo tempo, o morto é, sem precisar estar. A sua ausência é que preenche uma lacuna. Essa ausência informa, mesmo sem imagens, mesmo sem palavras.
Todo morto é uma notícia de primeira página sem possibilidade de desmentido. Na sua imaterialidade, o morto é ao mesmo tempo enunciador e enunciatário. Feito aqueles manifestantes silenciosos, com seus cartazes, andando em círculos diante da Casa Branca, o morto é um protesto mudo. E (o que é mais grave) – o morto, ao contrário do vivo, não é passageiro: todo morto é permanente. Por isso mesmo é incômodo pois, retirado da realidade, automaticamente se torna mais real do que o real. E como já foi ‘retirado’, é inamovível. O morto habita a memória humana, e esta, ao contrário da memória virtual dos computadores, jamais se apaga. Impassível, irrevogável, indesmentível, o morto é uma proclamação perpétua.
O morto informa sem necessidade de suporte material – papel de jornal, aparelho de TV, receptor de rádio, tela de computador. Informação em estado puríssimo, o morto está acima, abaixo e ao lado de qualquer interpretação: ele afirma a sua verdade pela sua condição. O morto é um editorial que não precisou ser escrito.
Ausência absoluta de poder
Todo morto está isento de explicações, pois contém, nele mesmo, as perguntas e as respostas. Ao mesmo tempo, todo morto acusa – acusa a inépcia que lhe causou a morte; acusa a maldade que lhe custou a vida; e, sobretudo, reclama da irritante ausência de sentido da condição humana, resumida na condenação ao existir e ao deixar de existir sem qualquer explicação objetiva para o nascimento e a morte (as religiões são tentativas de explicações de ordem subjetiva, e não cabem, portanto, nestas reflexões).
Apesar da solidão e do silêncio dos cemitérios, o morto é sempre mais temido do que o vivo, porque o vivo é previsível, mesmo na sua imprevisibilidade. Já o morto é inesperado: pode emergir a qualquer momento para anunciar sua verdade inconveniente.
O morto é risco permanente porque tem todas os argumentos a seu favor e nada tem a perder. O poder do morto reside exatamente na sua total e absoluta ausência de poder. Por isso todo morto é onipotente, e torna-se, por contraste, mais vivo do que os vivos.
História é remorso
O cronista Antonio Maria dizia que nada mais diferente de um morto do que alguém que dorme. Pois o sono é a vida em sua mais suave demonstração – o sono é a vida em descanso. Morto não dorme nem descansa. Em seu estado de vigília cósmica, o morto adquire o direito de acordar quem quer que seja, a qualquer hora. Mas é impossível acordar um morto.
De todas as suas características, talvez a principal, e a que mais aterroriza, está contida num truísmo segundo o qual os mortos não morrem mais – porque já morreram. E na condição de mortos, tornam-se inatingíveis, inatacáveis e inimputáveis. Os que morrem sem culpa, esses, então, não são apenas incômodos – são sentenças proferidas aguardando execução.
Os 220 mortos no acidente da TAM estão na condição dos mortos sem culpa. Com sua morte, tornaram-se 200 fantasmas eterna e incomodamente a incomodar o sono dos que, pagos e nomeados para mantê-los vivos, por irresponsabilidade ou dolo ajudaram a tirar-lhes as vidas. Drummond dizia que toda história é remorso. Os mortos são da mesma substância dos remorsos.
Verdade que fustiga a consciência
Não adianta fugir, negar, tergiversar. ‘Inútil dormir, que a dor não passa’, já dizia Chico pelo grito de Bethânia. Inútil explicar, driblar a lógica, tentar se livrar da sentença, pois ela já foi ditada e será aplicada na consciência individual dos responsáveis – a casa onde mora o carrasco que nunca dorme. Busquem-se explicações; realizem-se manobras diversionistas; troquem-se ministros; façam-se gestos obscenos; vá-se ao rádio e à televisão com o falso ar dos compungidos; construam-se monumentos às vítimas; anunciem-se providências enérgicas; organizem-se protestos; elaborem-se discursos de sinceras condolências; mandem-se rezar missas pelas almas; acariciem-se brinquedos, objetos pessoais, peças de roupa; releiam-se com olhos úmidos velhos bilhetes; revirem-se carteiras calcinadas, revejam-se fotografias desbotadas, remexam-se memórias esquecidas; cubram-se os corpos dos vivos com o branco da paz e o preto do luto; ordene-se às nuvens que suspendam as chuvas na hora dos pousos para que novas tragédias não se repitam.
Chorem-se todas as lágrimas do mundo.
Ainda assim, tudo restará inútil. Os 200 mortos do Airbus da TAM, mais vivos do que nunca, a tudo observam, vigilantes. Estão lá, enfileirados, na eloqüência de seu silêncio, sem precisar falar nada (informação em estado puríssimo), mas dizendo tudo. E não adianta torcer para que um dia morram e esqueçam. Quem morreu não morre mais. Esta eterna morte é o que os torna trágicos e incômodos. Eles não podem ser esquecidos. São eternos.
Morto é que nem notícia falsa rodando na internet: não morre nunca. Podem-se deletar mensagens, enviar desmentidos, bloquear remetentes, abrir processos, arrancar os cabelos e arremessar o mouse na tela do computador, nada adianta: a qualquer momento o morto volta para proclamar a verdade que fustiga a consciência dos culpados. Mortos são incômodos demais. Não desistem nunca.
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Jornalista (TV Câmara), professor de Comunicação (UnB), pesquisador e escritor