Você já prestou atenção, caro leitor, nos cenários, no figurino, na postura ultradisciplinada do pessoal do Estado Islâmico nos vídeos de execuções que eles distribuem? Ao fundo fica o deserto, os condenados vestem laranja, cor que se destaca ao contrastar com o traje negro dos militantes de cabeças cobertas. Toda essa mise-en-scène ajuda a aumentar o mistério.
Os condenados ajoelhados, o semblante mais sério impossível, enquanto um dos carrascos faz um discurso qualquer sobre a sentença que será aplicada dali a momentos.
A sentença é, então, aplicada com os rigores do sadismo e crueldade raramente captados por uma câmera, vamos dizer, jornalística, que registra a realidade. Mas, no caso dessas execuções, há uma realidade certinha demais para ser jornalismo –e ficam os telejornais do mundo inteiro esperando o próximo capítulo.
Há uma comoção e a condenação planetária com todas essas crueldades praticadas por esses bárbaros enlouquecidos pelo fanatismo.
Cabe a nós, jornalistas, fazer uma pergunta: e se os telejornais do mundo inteiro se recusassem a mostrar o que a “emissora” do Estado Islâmico produz com tanto esmero e sofisticação? Sem público para repercutir, será que continuariam com as matanças?
E se continuassem, mesmo sem TV como palco, será que conseguiriam ser tão famosos a ponto de recrutar jovens de diferentes países e culturas? É lógico que, para esse recrutamento, a internet dá conta do recado. Mas é –ou costuma ser– pela televisão e pelos jornais que o fato vira, vamos dizer, notícia.
Seriam acusados de autocensura os jornalistas de emissoras ocidentais que se recusassem a veicular essas imagens? Não são respostas fáceis, pois o fato jornalístico está lá.
Voltemos à TV, já que é ela que está, de alguma forma, na berlinda. Por fora, corre a pergunta: será que o telejornalismo tem algum poder de influenciar ou, mesmo, de mudar comportamentos? Ou será que, para o distinto público, jornalismo e ficção se confundem na telinha?
Na minha curta trajetória de repórter da TV Globo, em 1980, cobri as manifestações de rua que já vinham pipocando no centro de São Paulo. Nada me irritava mais do que perceber que algumas dessas passeatas só começavam a se movimentar quando a nossa equipe chegava para a cobertura.
Por causa da minha militância no Sindicato dos Jornalistas, conhecia quase todos que estavam lá, mas nem por isso ficava menos indignado. Mesmo por uma causa tão nobre tenho hoje a impressão de que era “usado” pelos manifestantes.
Em anos anteriores, como repórter da Folha, eu não me sentia assim, já que as passeatas definitivamente não começavam quando um repórter sem câmera e sem microfone chegava para a cobertura.
Talvez não custe aos profissionais de televisão redobrar a atenção para o que é e o que não é jornalismo.
Com as redes sociais e os celulares, cada um se sente no direito de veicular a sua própria notícia, como é o caso dos terroristas do Estado Islâmico. Ou os conceitos do que é jornalismo e do que é notícia na TV precisariam ser revistos?
***
Ricardo Carvalho, 66, jornalista, foi repórter da TV Globo e da Folha, diretor de jornalismo da TV Cultura e editor-chefe do Globo Repórter