Saturday, 16 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A confissão de Boni

O que significa estelionato? Nos dicionários, fonte segura que precisamos consultar regularmente, o termo significa “fraude praticada em contratos ou convenções, que induz alguém a uma falsa concepção de algo com o intuito de obter vantagem ilícita para si ou para outros” ou, mais objetivamente, uma “burla”, segundo o Houaiss. No Caldas Aulete, trata-se de “crime caracterizado por cometer fraude em contrato, documento, convenção etc., induzindo em erro a outra parte para com isso obter vantagem ilícita”. Já o bom e velho Aurélio, meu dicionário impresso preferido, reforça nosso entendimento sobre o assunto: “ato de obter, para si ou para outrem, vantagem patrimonial ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo em erro alguém, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

O Código Penal define a prática do estelionato através do seu famoso Artigo 171 (cantado em verso em letra de samba), reproduzindo com fidelidade o Aurélio. Verifique: “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Antes que o leitor pense que quem escreve é um rábula criminalista e não um historiador, peço um pouco mais de paciência. Pois entendo que é preciso destacar ainda que o mesmo artigo prevê pena de reclusão de um a cinco anos e multa para os incursos nesse crime. O inciso IV do parágrafo segundo ainda reforça que incorre nas mesmas penas quem “defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deve entregar a alguém”.

Pois bem. Todo esse preâmbulo se faz à guisa de uma entrevista realizada por Geneton Moraes Neto com o outrora todo poderoso José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, mais conhecido como Boni. Exibida inicialmente pela Globonews, das Organizações Globo, agora já pode ser vista (pelo menos alguns de seus trechos) no YouTube também. A certa altura, o entrevistador pergunta se Boni chegou a ser procurado por algum candidato na primeira eleição direta para presidente depois do fim do regime militar.

Informação fraudada

Permito-me aqui transcrever a resposta.

“Nós fomos procurados pela assessoria do Collor e eu achei que a briga do Collor com o Lula no debate estava desigual porque o Lula era o povo e o Collor era a autoridade. Então nós conseguimos tirar a gravata do Collor, botar um pouco de suor, alguma coisa como uma glicerinazinha, e colocamos as pastas todas que estavam ali com supostas denúncias contra o Lula, mas as pastas estavam inteiramente vazias, com papéis em branco. Foi uma maneira de melhorar a postura do Collor junto aos espectadores, pra ficar em pé de igualdade com a popularidade do Lula.”

Eis o que declarou publicamente Boni.

Quem quiser conferir a íntegra desse trecho, basta procurar o vídeo no YouTube com o título “Boni confessa manipulação no debate Lula x Collor”. E é exatamente isso que se vê: uma confissão de um crime de estelionato praticado pela Rede Globo de Televisão contra o povo brasileiro em 1989. Collor obteve indiscutível vantagem naquele debate – veja-se sua vitória na eleição. Boni e a Globo induziram ao erro, por meio fraudulento (pastas com papéis em branco apresentadas como se contivessem denúncias contra o adversário político), os espectadores/eleitores. Portanto, a informação (substância) que deveria ser levada e entregue ao público naquele debate nos estúdios da Globo foi fraudada, como confessa Boni.

Noticiário sob suspeição

Convém lembrar que um canal de TV é uma concessão pública (um contrato, uma convenção, como está nos dicionários), ou seja, pertence à sociedade e deve ser gerida pelo Estado. Não pode uma empresa privada fazer uso de uma concessão pública para ludibriar o espectador, enganá-lo de forma veemente. Posto dessa forma, fica parecendo que o Estado está a serviço da fraude e do estelionato que este senhor veio a público confessar. Notem que não estamos tratando de telenovela, de ficção, mas de um programa de natureza jornalística, em que uma emissora se propõe a apresentar um debate entre os candidatos ao cargo mais importante da nação, produzindo contudo uma fraude – cujas consequências, que todos bem conhecem, já que culminaram num inédito impeachment.

Por tudo isso, não resta dúvida que a sociedade brasileira precisa discutir e examinar de forma democrática um marco regulatório para a mídia que temos. O debate vem sendo propositalmente emperrado através de um argumento que pretende confundir a opinião pública, ao classificar a iniciativa de ser uma torpe tentativa de impor censura aos meios de comunicação. Bobagem! Quem nasceu e cresceu sob a ditadura militar abomina toda e qualquer forma de censura – e eu me incluo humildemente nesse grupo.

O que me parece intolerável é viver sob a égide e os desmandos de uma mídia que faz e desfaz sem sofrer quaisquer sanções ou arcar com as consequências por promover as mais bárbaras fraudes a que temos assistido. A confissão de Boni coloca sob suspeição todo o noticiário televisivo que invade os lares desse país afora diariamente – inclusive aqueles em que a internet e a blogosfera ainda não chegaram para instigar a dúvida, a reflexão e o senso crítico mais aguçado.

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[Denílson Botelho é professor de História da UFPI]