Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

“Difícil não é mostrar onde a mídia erra, mas apresentar boas práticas de acerto”

Luiz Martins da Silva é jornalista e pesquisador na área de Comunicação Social, além de professor de Ética na Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Em depoimento ao Observatório Mídia&Política, falou sobre o ensino de ética nos cursos de jornalismo e a importância de realizar uma leitura crítica da mídia. Também condenou algumas práticas nocivas na área e apontou exemplos a serem seguidos pela imprensa.

A seguir, os principais trechos do depoimento, colhido no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB.

Leitura critica da mídia como denúncia x Leitura crítica da mídia como proposta

“Coordeno, desde 1996, o projeto SOS Imprensa na Faculdade de Comunicação da UnB. Inicialmente era uma pesquisa do CNPq chamada Formas de Apoio a Vítimas da Imprensa. ‘Vítimas’ era um termo muito pesado e negativo, então mudamos para Formas de Apoio aos Usuários da Imprensa. Havia uma instância de leitura crítica, focada primeiramente na questão dos danos: danos morais e danos materiais das vítimas da mídia. Hoje, a discussão se reverteu totalmente para tentar compreender a mídia. Atualmente, esse projeto é realizado por quatro bolsistas e 20 voluntários. O maior desafio é levar resultados à sala de aula. E o mais difícil não é mostrar onde a mídia erra, é apresentar as boas práticas de acerto. Porque a tentação dos alunos quando vão apresentar um trabalho é dizer: `Professor, eu posso falar sobre o grande erro da mídia brasileira? O grande equívoco que foi a Escola-Base? Posso fazer um trabalho sobre publicidade enganosa?´. Se a gente pegar os últimos 20 anos podemos enxergar um século de denúncias.

É muito difícil você mostrar boas condutas, bons exemplos. Como alguém pode fazer, por exemplo, jornalismo policial? O repórter fica à sombra do crime, à sombra da polícia. O próprio nome reportagem policial é equivocado, o correto seria: jornalismo e segurança pública. Estou tratando do interesse público, da coisa pública e da segurança pública.

Orientei um trabalho de conclusão de curso de duas alunas que queriam fazer estudo de caso de um jornal que mostrava caveiras, cadáveres, rostos cortados saindo sangue, miolos escorrendo na banca, uma coisa horrorosa. Eu disse a elas que o maior desafio não era criticar esse trabalho, e sim descobrir como fazer jornalismo policial com decoro, sendo um bom profissional, não traindo seus princípios, não desservindo o cidadão. Este tipo de jornalismo policial humilha o cidadão, expõe pessoas que já são vítimas desde que nasceram. Atores sociais que, por exemplo, são vítimas de pobreza, de racismo, de todo tipo de discriminação. O cara cai em um mundo de violência, de exclusão social e mesmo depois que morre tem o corpo exposto.

Outro trabalho que orientei foi sobre um programa policial de Goiânia chamado Chumbo Grosso. O apresentador do programa xinga acusados de íngua, de monstro, usa uma séria de palavrões, enquanto estão algemados. Depois, entrevista o delegado: `Como é que você pegou, como é que você matou, etc.´ Uma das reportagens era sobre a exumação de um corpo. O acusado do crime confessou ter matado, enterrado e plantado bananeira em cima do local. O defunto foi enterrado de pé, e o apresentador ridicularizava: `Pô, o cara foi enterrado em pé? O cara virou mandioca!´

A esquizofrenia dos cursos de Comunicação

É muito fácil criticar o que há de podre, de feio e sensacionalista na mídia. O que tem de mais fácil em leitura crítica é olhar e dizer `que horror!´, só que isso vira cinismo. Eu participei de um livro organizado pela professora Barbara Freitag sobre educação, e o meu capítulo se propõe a criticar certa esquizofrenia que acontece nos cursos de Comunicação: metade do curso fala-se aos alunos sobre o colonialismo da mídia como ferramenta alienadora e na outra metade diz-se: ´Vamos à técnica´ – que são as oficinas e laboratórios. Isso é uma coisa doida!

O grande desafio da ética é tratar questões, por exemplo, sobre como fazer uma propaganda de cerveja sem mostrar a mulher como troco. Por que há essa idiotização da mulher, quer dizer, o cara está bêbado e a mulher fica apaixonada por ele porque está tomando cerveja?… Por que esse tipo de coisa vende e dá tanto resultado? Você sabia que cineastas ganham dinheiro para fazer as próprias produções dirigindo filmes publicitários? Por que se investe tanto nessa área? Porque o retorno é grande.

O desafio: transmitir a informação ou influenciar boas ações?

Uma vez fizeram uma pesquisa em que 70% da amostragem respondeu corretamente a nove das 10 questões sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Essa pesquisa mostrava que o grande problema da comunicação não é transmitir a informação, porque as pessoas já estão bem informadas. ·O grande desafio da comunicação é fazer com que as pessoas tenham padrões elevados de conduta e comprometimento com o coletivo. Para compreender isso, adentrei em outros campos do conhecimento. Nunca tive oportunidade, na Graduação, de estudar uma disciplina chamada Introdução à Psicologia. Eu queria entender por que uma pessoa tem um tipo de informação e age contra ela própria. Por que um cara se entope de bebida em uma festa e acha que está dirigindo bem?

E aí você me pergunta: `O que isso tem a ver com leitura crítica da mídia?´. Se não se compreender esse âmago, fica-se sempre no cacoete: `Olha como eles fazem errado´, `Olha como a mídia é alienante, como a mídia é paradoxal´. A mesma mídia que veicula uma campanha educativa, na novela mostra condutas vis; faz campanha de educação no trânsito para, em seguida, exibir comerciais de automóvel mostrando a velocidade como diferencial. Quem vende carro é velocidade, dá status ter o carrão do merchandising.

Os alunos de jornalismo devem aprender como fazer

Um aluno quer fazer um estudo de caso sobre publicidade. Eu aconselho: `Estude uma campanha que não seja machista, nem racista, nem preconceituosa, nem excludente. Mostre uma campanha bem feita que venda alguma coisa. Pense o outro lado da leitura crítica: o como fazer´.

Fico muito atento quando a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), por exemplo, produz guias. Guia de desenvolvimento humano para jornalistas, guia de educação para jornalistas, guia sobre como tratar a criança que foi vítima de abuso. O código de ética é insuficiente, porque ele não ensina como fazer, só diz `o jornalista não deve´. Não deve ser mórbido, não deve quebrar o decoro, etc. Mas a prática é que é transformadora da realidade. Resultado: no fim do curso de Jornalismo, o aluno não tem base para fazer um jornalismo policial respeitoso, que não seja preconceituoso e não use uma linguagem policial excludente e discriminatória. Não consegue deixar de fazer um jornalismo que exerce o papel de imprensa-tribunal, de linchamento moral contra uma reputação. Como ter esses cuidados todos? Há um campo de trabalho muito grande a ser feito, de pesquisa, de guias e de cartilhas, glossários para que a pessoa leia e compreenda: `Vou fazer um trabalho que seja um serviço, e não um dano´.

Mais uma vez, o segredo não é criticar. A leitura crítica da mídia é principalmente dotar o estudante e o profissional de ferramentas. Primeiro as ferramentas éticas e morais, depois as ferramentas técnicas. A combinação técnica, ética e estética; a estética no sentido do decoro, de decoração mesmo, do que é esteticamente um produto que se possa apresentar.”

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[Paulo Figueiredo, Fábio Pereira e Camilla Braga integram o Observatório Mídia&Política, da Universidade de Brasília]