Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O legalismo do ministro e o anseio popular

Servidor e militante do Judiciário há mais de duas décadas, vi, como dever de ofício, a entrevista que o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, deu ao tradicional Roda Viva, da TV Cultura. Iniciei este artigo logo após a programa, três semanas atrás, mas concluo apenas agora por ter aguardado, propositadamente, o retorno dos trabalhos no Judiciário quando, certamente, as discussões sobre os poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) voltarão ao centro das atenções.

Todos sabemos, de forma ampla e inexorável, que foi Marco Aurélio foi quem deu início ao processo de esvaziamento das funções do CNJ ao conceder, às vésperas do Natal, liminar determinando que a apreciação da conduta de juízes não pode começar no Conselho, mas nas corregedorias estaduais. A partir daí, as notícias – todas desastrosas – sobre o Judiciário começaram a circular dia sim, outro também. São tantas e irritantes informações que nem mesmo parece que estamos num novo ano. Ou, talvez, 2012 serviu apenas para trocar a folhinha pendurada na parede.

Marco Aurélio, em pouco mais de 90 minutos de entrevista, tentou justificar sua atitude injustificável apegando-se à Carta Maior do Brasil. Alegou, ainda que não de forma convincente, acreditar que o trabalho do CNJ pode ser importante, mas que o órgão não pode ser mais que a Constituição do país. Por diversas vezes ironizou o trabalho da corregedora Eliana Calmon chegando a indicar, cinicamente, que “quem sabe ela não venha a substituir o STF também?”, ou que o CNJ estaria ungido pela sociedade diante de tantas revelações.

O ministro é conhecido pelos seus próprios pares como o rei do voto vencido e, sob a ótica da opinião pública, ele também está com o voto vencido.

Chaga aberta

Ao pregar a Constituição Federal como o bálsamo para a cura de todos os males e para justificar uma medida desnecessária, às vésperas do recesso do Judiciário, o ministro Marco Aurélio cometeu um pecadilho que, de fato, nem é de sua responsabilidade. Os governantes de plantão, e em quaisquer esferas, sempre avocam o mandamento constitucional quando os beneficia. Mas a Carta Magna do Brasil vive sendo descumprida quando convém ao poder público. Só em nossa lida diária, posso destacar o constante descumprimento do Artigo 37, X que trata da revisão salarial anual do funcionalismo, ou o Artigo 40, VIII que versa sobre a paridade entre servidores da ativa, aposentados e pensionistas.

Há ainda, na Constituição do Brasil, artigos, digamos, poéticos e que todos sabemos que o cumprimento não logra êxito em sua plenitude. Peguemos por exemplo o Artigo 6º da nossa Carta que preconiza: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Fica difícil imaginar ter “tuuuuuuudo” isso, com um salário mínimo de R$ 622,00. E, reconheçamos, a situação já foi pior, em tempos não tão passados.

E aí o ministro Marco Aurélio vem se apegar à Constituição para defender interesses corporativos? Soa hilário, para não dizer patético! Todos sabemos, com raríssimas exceções, que as corregedorias pouco fazem em relação à conduta de seus magistrados. E todos sabemos também que eles não estão acima da lei, apesar da postura arrogante que a grande maioria dos juízes e desembargadores adota.

O que o CNJ põe em praça pública agora faz parte de um acervo de documentos que diversos representantes das entidades do Judiciário paulista fizeram chegar às mãos do então corregedor, ministro Gilson Dipp, no final de novembro de 2009. Tudo que está aí escancarado, como uma chaga aberta, já era de nossa ciência e a corregedoria estadual, à época, nada fez.

O CNJ e a corregedora

Eu não nasci ontem e também não acho que a ministra Eliana Calmon seja a salvadora da pátria. É possível que surjam convites para que ela venha a se candidatar a algum cargo eleitoral, como dizem parte de seus detratores, mas isso faz parte do jogo político. E se ela se eleger a algo no futuro, não desmerece seu trabalho hoje, de corregedora.

A verdade é que ela está balançando o coqueiro. Está mexendo em coisas que o mais obscuro, antiquado e empedernido poder da res publica (lembram-se?, coisa pública), permanecia a esconder. E ela não comete nenhum pecado. Só está fazendo seu trabalho como, aliás, ministro Marco Aurélio, está lá na Constituição Federal que Vossa Excelência diz defender e ser o guardião como é a função nobre do Supremo Tribunal Federal. No Artigo 103-B, § 5º, instituído pela Emenda Constitucional nº 45 [“Reforma” do Judiciário] compete à corregedora: “I – receber as reclamações e denúncias, de qualquer interessado, relativas aos magistrados e aos serviços judiciários; II – exercer funções executivas do Conselho, de inspeção e de correição geral; III – requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios”.

No que Eliana Calmon, ou o CNJ, ou qualquer coisa está infringindo o tal do “preceito” constitucional?

Sair do pedestal

Em setembro do ano passado, Eliana Calmon “chocou” os seus pares ao afirmar que existiam “bandidos de toga”. As entidades da magistratura saíram gritando e esperneando, alegando que ela generalizou. Trata-se de uma grande bobagem, pois há bons e maus profissionais em qualquer área do conhecimento humano. Por que haveria de ser diferente com os magistrados?

As notícias que brotam nos jornais, desde meados de dezembro, são tristes e fazem Themis enlouquecer, principalmente sobre o Judiciário Paulista. Por sinal, devemos lembrar que, quando o desembargador Antonio Carlos Viana Santos, presidente do TJ/SP faleceu há um ano, naquela época pipocaram algumas informações e suspeitas que acabaram, ao menos em tese, caindo no esquecimento. Mal sabíamos que o porvir em termos de informação, desde a morte de Viana Santos, seria muito pior.

Reitero que não nasci ontem e não acredito, por mais que eu me esforce, que alguém será efetivamente punido. Há alguns dias escrevi um outro artigo questionando se os magistrados seriam punidos, mas não tenho essa ilusão. Poderá, muito eventualmente, acontecer alguma “aposentadoria compulsória” e com integralidade de vencimentos, que é, absurdamente, a maior punição e a poucos magistrados, de que se tem notícia. Mas o Judiciário e suas excelências deverão, data maxima venia, rever seus conceitos. Saírem definitivamente do pedestal, rasgarem suas togas, ao menos em termos de oxigenação do pensamento, e lembrarem para qual missão eles optaram quando fizeram o concurso para a magistratura. Lembrarem, ainda, que são servidores públicos, tal e qual o mais simples dos servidores, e que devem agir em defesa da sociedade que lhes paga os vencimentos.

O encaixe de uma peça

Todos esses juízes que receberam milhares de reais a título de indenização, vão conseguir comprovar, salvo engano, que esses recursos eram devidos e que tudo que receberam é, absolutamente, legal. Mas ser legal, não significa ser moral. Muitas vezes, o legal pode ser nojento, fétido, vergonhoso.

Enquanto isso, aguardo por respostas, que não sei dar, a perguntas que recebo dos meus companheiros diuturnamente. Querem exemplos? “Por que o desembargador recebeu 1,5 milhão de reais e eu tenho verbas de indenização para receber, pedi para uma cirurgia para a minha mãe e sequer me responderam e tive que recorrer a um agiota?” “Estou com câncer. Pedi aquilo que o TJ me deve para comprar remédios. Tenho mais de 200 mil para receber e me pagaram 4 mil. A quem recorrer?” “Pedi verbas indenizatórias que o TJ não me paga há uma década para comprar uma cadeira de rodas motorizada para minha filha que é portadora de necessidades especiais. A cadeira custa 14 mil. Juntei laudos médicos e orçamentos de compra, e o TJ me mandou 4 mil. O que fazer?”

Estes são apenas exemplos pinçados de uma dura realidade naquele que é tido como o maior Judiciário do país.

O meu maior incômodo em toda essa história é o encaixe de uma peça a esse grande quebra-cabeça. Em 2010, acompanhei e trabalhei nos 127 dias de greve do Judiciário, a maior da história do funcionalismo público paulista e lembro-me de parlamentares e representantes do governo que afirmavam não poder mandar mais dinheiro para o Judiciário, para cumprir nossa mísera data-base de 4,77%. Repetida e enfadonhamente, eles alegavam, inclusive o governador à época, que o Judiciário já havia recebido recursos para cumprir a reposição salarial.

Agora eu entendo para qual esgoto e quais foram os ratos que se locupletaram da verba que era destinada a todos.

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[Sylvio Micelli, é jornalista e servidor público – ASSETJ]