Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tribunal comunicacional: nem os ciclistas conseguem escapar

“Nossa intenção jamais será a de ofender. Mas o que importa é a percepção, e não a intenção.” Essa foi a justificativa do editor de Zero Hora (ZH) para a reportagem “Bloqueio nas Ruas: quinze quilômetros com ciclistas”, de Humberto Trezzi. A justificativa foi publicada numa “Carta do editor: Morno, jamais”, em 28 de janeiro de 2012. Entretanto, qual a motivação do editor de ZH em justificar uma reportagem assinada por um jornalista com 28 anos de profissão?

Sabemos da importância de ZH no estado do Rio Grande do Sul, tanto histórica quanto política e economicamente. Vale lembrar que Roberto Ramos relata a experiência como funcionário do jornal Zero Hora. Para ele, “não se pode perder de vista a circunstância histórica que gerou ZH. Houve a extinção do Última Hora, por razões políticas, e o seu sucedâneo, é claro, deveria estar afinado com as contingências da ditadura. Mesmo os seus pró-homens nunca negaram as raízes do jornal. ZH, indiscutivelmente, foi concebido como cria do autoritarismo” (A Máquina Capitalista, 2000, p. 70).

Cria do autoritarismo ou não, a sugestão é que o leitor deste artigo possa ler o livro de Roberto Ramos e tirar as suas próprias conclusões. A citação, porém, é justificada para marcar o ponto de vista a ser discutido: a crise de credibilidade da imprensa. Nos últimos anos, a imprensa brasileira vem atravessando uma crise de credibilidade com o surgimento de diversos livros, dos mais distintos autores, relatando fatos e situações nos quais a imprensa teve um papel fundamental, não no sentido de revelar a verdade dos acontecimentos, mas, principalmente, na tentativa de forjar a verdade conforme seus próprios interesses. Cite-se o livro de Palmério Dória e Mylton Severiano (Crime de Imprensa, 2011), que relata exemplos de contradições cometidos pelos órgãos de imprensa.

A questão das contradições da imprensa é crucial, necessária e, certamente, delicada. Por exemplo, com que autoridade um jornalista escreve uma reportagem generalizando todo um grupo de pessoas? Será que o fato de pertencer a um grupo as coloca numa situação de que todas tenham de pensar da mesma maneira? Bom, para o jornalista Humberto Trezzi, que escreveu a matéria em questão, parece que sim. É por isso que num determinado momento de sua reportagem afirma: “E o Massa joga aberto: é contra. Contra carros nas ruas. Contra motos e ônibus. Contra Veículos motorizados”.

Diante dessa questão surge a pergunta: Quem é o Massa? Massa Críticasão todas as pessoas que, na última sexta-feira do mês, optam por ir ao Largo Zumbi dos Palmares em Porto Alegre para pedalar por uma cidade mais sustentável. Nesse princípio de que toda Massa Crítica é uma massa distinta, é impossível não aceitar que o próprio jornalista fez parte da Massa Crítica do dia 25 de dezembro de 2011, ou não? Mas pensando bem, se por um momento concordarmos com a generalização do jornalista na reportagem, estaremos aceitando que ele no dia 25 de dezembro foi “Contra. Contra carros nas ruas. Contra motos e ônibus. Contra Veículos motorizados”, é isso? Bom, deixaremos esse questionamento para o próprio jornalista nos esclarecer, se quiser.

Muitas pessoas discordam da generalização da reportagem de Humberto Trezzi, porém não tiveram a oportunidade de se manifestar, de apresentar a sua versão dos fatos ou de não concordar com a publicação do jornal. É o caso de Flávio Teixeira, que teve a sua imagem em destaque na foto da reportagem de ZH. Nas palavras de Flávio: “Eu soube dessa reportagem através do meu colega Roberto que me disse ‘Ó, tu viu a foto tal, não sei o que?’ Eu soube depois, né? Não soube no mesmo dia, mas tentei procurar o jornal e não achei. Aí, agora, não faz muito, o Roberto conseguiu e me trouxe.”

Numa tentativa de dar a oportunidade ao Flávio para que ele possa manifestar sua opinião, publicamos abaixo a transcrição de uma entrevista com ele. Logo em seguida será realizada uma análise das falas de Flávio.

“Quando junta texto e imagem é que fica ruim”

Marlos Mello – Flávio, a respeito da reportagem do jornal Zero Hora“Quinze quilômetros com ciclistas”, assinada pelo jornalista Humberto Trezzi, recebeste do jornal Zero Horaalgum comunicado que a tua imagem iria ser publicada nessa reportagem?

Flávio Teixeira– Não, aqui que tá o meu questionamento. Eu soube dessa reportagem através do meu colega Roberto que me disse “Ó, tu viu a foto tal, não sei o que?” Eu soube depois, né? Não soube no mesmo dia, mas tentei procurar o jornal e não achei. Aí, agora, não faz muito, o Roberto conseguiu e me trouxe. Eu se tivesse visto em seguida eu ia tomar a iniciativa de fazer um contraponto, um questionamento, né? Porque eles botaram ali uma visão totalmente distorcida, uma visão tendenciosa, diria, né? E por cima usaram a minha imagem, né? Eu acho que, primeira coisa, tá, eles não tinham o meu contato na hora ali, mas eles usaram a imagem sem eu saber. Então, eles fizeram um texto totalmente tendencioso e eu poderia até tá exigindo alguma reparação porque eu achei muito ruim o que fizeram comigo. Pra um cara que se diz ciclista (falando do jornalista Humberto Trezzi), fazer um texto daquele ali, eu discordo totalmente.

Mas tu diz isso porque viu a tua imagem associada a algo? Deixa eu explicar: como é que tu te sentiu vendo a tua imagem associada a uma reportagem onde pessoas são acusadas de serem “contra. Contra carros nas ruas. Contra motos e ônibus. Contra veículos motorizados”?

F.T.– O conteúdo do texto é totalmente negativo. O que ele fala é que o pessoal não respeita o trânsito. Ou seja, ele faz uma associação para parecer que a massa é negativa e, na foto, eu tô bem na frente. Eu não fui comunicado de nada e ainda por cima tive a minha imagem associada a um texto de forma negativa, pejorativa, que me prejudicou. Eu não tô dizendo que a foto não ficou boa, a foto ficou boa, eu saí bem espontâneo, mas no momento que junta o texto e a imagem é que fica ruim. Eu não gostei da forma como eles associaram a minha imagem ao que foi publicado.

E se a tua imagem fosse associada a uma coisa “positiva”, por exemplo, “ciclistas passeiam pela orla do Guaíba”, afetaria a tua imagem? Tu te sentirias prejudicado?

F.T.– Não, eu acho que não. O problema tá quando associa o texto à imagem. Por exemplo, como no movimento negro, né? A gente procura reivindicar quando associam a palavra negro com uma coisa negativa, por exemplo, “magia negra, negro é sujo, negro é bagunceiro”, quando associa, entende? E ali, eu tô sentindo a mesma coisa. Eu tô ali me vendo naquela imagem na frente, o que que vão pensar? “Ah esse aqui é o líder dos vagabundos.” Enquanto, na verdade, a ideia da massa é ser um coletivo e não ter nenhum “comandante” como ele fala no texto da Zero Hora.

Mas no texto, lendo a reportagem tu achas que ele tenta passar uma imagem que a massa crítica é um grupo “organizado” com objetivo de ser contra tudo? “Contra carros nas ruas. Contra motos e ônibus. Contra veículos motorizados” ? Pra ti, é isso que a massa representa? Tu estás na massa por esses motivos que o Humberto fala?

F.T.– Não, assim, ó. Todo o grupo de pessoas quando começa a crescer, grupo grande mesmo, ele começa a incomodar e começa a aparecer diversas coisas sobre ele, entende? A massa é composta por diversas personalidades, certo? Não existe um grupo monolítico onde todo mundo pensa igual. Sempre vai ter alguém com outras ideias, inclusive diferentes umas das outras. Então, não tem como controlar. Num grupo pequeno até é possível orientar, mas num grupo grande, não tem como. As iniciativas são distintas. Tem gente que pula, tira foto, se diverte, mas é isso, né?

“Me disseram que saí bem na foto”

Eu não sei se tô entendendo bem, mas deixa eu tentar: tu estás querendo me dizer que o “espírito” da massa é diferente em cada encontro, é isso? Por exemplo, naquele dia que o Humberto Trezzi fez a reportagem, ele também era massa crítica, é isso?

F.T.– Sim, ele também. Mas ele foi com uma finalidade. A finalidade dele era fazer uma reportagem, talvez com uma imagem já pré-concebida da massa. Ou seja, na minha opinião, ele já foi exatamente pra escrever o que ele escreveu. Ele tava participando como ciclista, mas a ideia dele era de fazer uma reportagem “metendo pau” na massa crítica. E mais, pra meter pau na massa crítica ele utilizou a minha imagem e a de todo mundo que tava.

E, Flávio, e os teus familiares e amigos? Depois que eles viram essa reportagem, viram lá a tua foto estampada em destaque como pertencente a um grupo qualificado com todos esses “adjetivos”, como é que eles se sentiram? O que eles te disseram?

F.T.– Então, eu moro sozinho, né? E os meus irmãos, não sei se eles viram, né? Mas os meus amigos gostaram. Viram lá a foto mais do que o texto, entendeu? Me disseram que eu saí bem na foto, me reconheceram de primeira. Mas realmente a foto ficou boa, só não me comunicaram, não me disseram nada, entende?

Questões sem respostas

Quem leu a reportagem de ZH, provavelmente deve ter pensando que Flávio pertence a um grupo de pessoas que se reúne para manifestar de forma “caótica, anárquica e rebelde” e, ainda por cima, desrespeitando o status quo da legalidade, que, naquele momento é representado pelas sinaleiras de trânsito, não é isso? No entanto, depois de ler a transcrição da entrevista percebe-se que nem todos pensam da mesma maneira e que não há um grupo organizado para manifestar por uma causa, como o jornalista relata em sua reportagem.

Entretanto, o ponto fundamental da entrevista é quando Flávio relata como se sentiu vendo a sua imagem publicada no jornal ZH sem ser comunicado e, principalmente, associado a uma reportagem que não condiz com a sua forma de pensar. Dessa forma, a partir do ponto de vista do entrevistado, o jornal, prejudicou a sua imagem e o colocou numa situação de imenso constrangimento. E mais, a reportagem de Humberto Trezzi fere o cumprimento do “Guia de Ética e Autorregulamentação Jornalística do Grupo RBS”, lançado recentemente em Porto Alegre, com a presença do ministro Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal, que tem por “objetivo prioritário de assegurar ao público seu direito à informação independente, à opinião plural, às respostas e às correções sempre que estas se fizerem necessárias.”

Essa é apenas uma das questões: i) isso é compromisso com a liberdade de informação? ii) a ética foi respeitada? iii) é assim que deve agir um jornal? iv) e as correções à matéria? São questões sem respostas.

A importância da regulamentação

O jornal ZH errou ao não comunicar às pessoas que estava tirando fotos e, principalmente, que iria publicar essas imagens. Outra coisa, mesmo que publicasse as fotos, deveria ao menos proteger a imagem dessas pessoas que tiveram seus rostos expostos ao julgamento, tanto do jornalista, como também dos leitores. Ao que consta no direito de imagem previsto no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.

Percebe-se, dessa forma, o abuso na forma como a informação foi veiculada ao público, generalizando-a e configurando-se numa tentativa de induzir os leitores a conclusões equivocadas e estereotipadas. Frise-se que a dialética deve sempre estar presente na formulação de matérias jornalísticas, com vistas a adoção de uma posição isenta e ética. Para reparar tal equívoco, formulado pela opinião pessoal de uma única opinião, o jornal ZH deveria procurar entrevistar algumas pessoas que estavam na Massa Crítica naquele dia da reportagem. Quem sabe, então, nem fosse necessário esse artigo.

Por fim, a crise de credibilidade da imprensa brasileira, mais especificamente neste caso do jornal ZH, passa pelo que o governador Tarso Genro classificou de “tribunal comunicacional”, em cujas investigações, os repórteres, competentes ou incompetentes, promovem um juízo público que pode punir ou perdoar conforme seus próprios interesses. No caso, tal tipo de contradição, nunca mereceu maior atenção como nos dias de hoje. No entanto, de preferência essa questão é colocada de lado no jornal ZH, que tem a pretensão de ficar acima do bem e do mal, de ser imparcial, de não possuir partidos e nem interesses.

No fundo, a estratégia de ZH é conhecida por tentar sempre se revestir do manto burguês da neutralidade. Na prática, só a lei pode garantir o direito a qualquer pessoa manifestar sua opinião. Para tanto, é preciso tratar com seriedade a questão dos meios de comunicação. Há em andamento, pois, com grande possibilidade de aprovação no estado do Rio Grande do Sul, a criação do Conselho Estadual de Comunicação. Este processo de regulamentação democrática e participativa poderá evitar que violações aos direitos constitucionais da liberdade de expressão e abusos no direito à informação sejam perpetradas, e assim avançar na democracia e no Estado de Direito.

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Cristiano Lange dos Santos, Gilberto Flach, Marcelo Sgarbossa, Marlos Mello e Vera Regina dos Santos Figueiredo são, respectivamente, advogado e procurador jurídico do Laboratório de Políticas Públicas e Sociais (Lappus); gestor, especialista em projetos sociais e integrante do Lappus; advogado e diretor do Lappus; psicólogo social e integrante do Lappus; e estudante de Administração e integrante do Lappus]