A partir do mote da amplamente noticiada greve da Polícia Militar na Bahia e seu espraiamento para outros estados da federação, impõe-se a necessidade de pensarmos algumas questões ligadas à segurança pública. Inicialmente, é possível estabelecermos em que medida as greves dos agentes de segurança pública são instrumentos adequados para o pleito pretendido (entre outras coisas, a melhoria do salário). Mas é possível ampliar o foco e perguntar qual é o modelo de segurança pública que temos e o que queremos.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 142 – que trata das Forças Armadas –, proíbe o militar de sindicalizar-se e fazer greves. Entretanto, segundo o sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, coordenador do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da UFRGS, desde 1997 contabilizam-se 150 greves (entre policiais Civis, Militares, Federais, Guardas Municipais e agentes penitenciários). Isto nos remete a considerações não pontuais sobre a greve na Bahia (legitimidade ou ilegitimidade, ou utilização política da mesma), mas à necessidade de instituir canais de negociação com os agentes de segurança. A vedação constitucional não tem tido qualquer relevância no impedimento das greves, mas faz com que as negociações se desenrolem de maneira não cooperativa na base da configuração policiais versus Estado, com a população assistindo impassível.
A Constituição de 1988 foi incapaz de estabelecer um modelo inequívoco de policiamento democrático. A própria separação obrigatória (na medida em que é vedado aos entes federativos estaduais mudarem esta organização) entre Polícias Civis (judiciária) e Polícia Militar (ostensiva) cria uma lógica dúplice de proteção, na qual o policiamento ostensivo é muito comumente associado à violência e desrespeito aos Direitos Humanos. A Polícia Militar, ao mesmo tempo em que é subordinada aos governadores do estado – mas também pode ser considerada subordinada ao Comando das Forças Armadas, ou seja, ainda que subordinada ao poder civil do estado –, também tem seu funcionamento marcado pela hierarquia militar, a qual não consegue dar conta das complexidades de uma sociedade democrática.
Contexto de cidadania
Ao invés de promover um funcionamento pautado pelo respeito aos cidadãos, aos direitos humanos e à ordem democrática da segurança pública (entendida em sentido amplo), tem-se um quadro em que a segurança é entendida como ato de força e no qual os movimentos sociais são criminalizados e tratados como excluídos da sociedade. Exemplares neste sentido são as recentes ações de retirada dos moradores em Pinheirinho, em São José dos Campos, e as ações na chamada Cracolândia no centro de São Paulo, que mostram que a polícia não tem sido utilizada para proteção, mas para resolução de conflitos através da força.
O que se coloca como imperativo não é a greve dos policiais em si, mas estabelecer o policiamento que queremos. Uma polícia que trata as populações excluídas como inimigos da sociedade, que tem uma alta taxa de letalidade em sua atuação e, surpreendentemente, é a responsável por definir como suas atuações são catalogadas (através dos altamente controvertidos autos de resistência), é uma das manutenções da lógica autoritária na ordem política brasileira. Não precisamos de um policiamento ostensivo se este for entendido como autorização para uso da força; não precisamos de segurança pública que resolve questões patrimoniais e de saúde pública pelo processo de exclusão dos cidadãos da esfera pública, através de uma “limpeza” da cidade. Precisamos, sim, da segurança pública que seja tratada como serviço público em um contexto de cidadania, e não de força na lógica da guerra. Assim, mais do que saudar o fim do “estado de natureza” com a volta ao trabalho dos policiais, devemos aproveitar a ocasião para ver o serviço para além das interrupções, mas das atuações cotidianas e, muitas vezes, abusivas.
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[Heloisa Fernandes Câmara é mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná e professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos no Centro Universitário Curitiba]