Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fracasso da TV digital aberta

Falta alguém com a competência, seriedade e disponibilidade de um Daniel Herz para escrever a necessária história da digitalização da TV aberta no Brasil. E revelar que, sob quaisquer aspectos, trata-se de um retumbante fracasso. O Decreto 4.901/2003 permitiu a criação de vários consórcios de universidades e centros de pesquisa, organizados em torno de 20 editais para o desenvolvimento de soluções para diferentes tecnologias ligadas à TV digital, como antenas inteligentes, modulação, entre outras. Até hoje não foi feito um balanço do resultado destas pesquisas financiadas com recursos públicos. Quais falharam (algumas, inclusive, prometendo muito)? Quais obtiveram sucesso?

Ao fim e ao cabo, apenas uma tecnologia nacional foi adotada pelo Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD). Trata-se do middleware Ginga, mais especificamente de sua porção NCL, desenvolvida pela PUC-Rio. Mesmo assim, seu uso só será obrigatório em 2013, quando as SmartTVs da Samsung, LG e Sony já terão dominado o mercado, com seus middlewares proprietários. Sem o middleware e sem a definição de um canal de retorno, também não foi implementada a interatividade na TV digital aberta. E com isso perdeu-se a chance de introduzir vários apps que vinham sendo desenvolvidos com foco no cidadão, como mensagens eletrônicas de utilidade pública, banco eletrônico, serviços de pré-diagnóstico e chamada de emergência, educação à distância, entre outros.

Provavelmente a maior vitória dos radiodifusores foi ter evitado a adoção da figura do “operador de rede”. Com ele, ao invés de cada radiodifusor instalar suas próprias estações de transmissão, uma única empresa seria escolhida para receber o sinal de todos os radiodifusores e transmiti-lo para a casa dos usuários. Haveria uma evidente redução de custos, uma isonomia na qualidade do sinal e, principalmente, não se entregaria um canal inteiro para cada radiodifusor, permitindo otimizar o uso do espectro.

Exportando o modelo

Sem o operador de rede, cada radiodifusor recebeu o equivalente a um canal inteiro de 6 Mhz. Este espaço, antes necessário para transmitir uma única programação analógica, hoje, com a digitalização, permite disponibilizar várias programações simultaneamente. Mas, ao entregar um canal inteiro para cada radiodifusor, o governo terminou impedindo que haja espaço (pelo menos enquanto houver também a transmissão analógica) para a entrada de novos radiodifusores. Continuamos, portanto, nas mãos do atual oligopólio.

Para piorar, como cada radiodifusor terá que construir sua própria infra-estrutura de transmissão, com geradora, retransmissoras e repetidoras, o governo decidiu criar uma linha de financiamento do BNDES, com condições vantajosas, chamada Pro-TVD. Ou seja, somos nós, os trabalhadores que ajudamos a custear o FAT, que por sua vez alimenta o BNDES, que estamos pagando para não ter mais radiodifusores. Genial, não?

Sem tecnologias nacionais, o SBTVD, na verdade, é a adoção do sistema japonês, conhecido como ISDB-T, cuja propriedade intelectual que pagamos pertence a empresas como Sony e NEC. Mas, não satisfeito em pagar pelo uso no Brasil, nosso governo resolveu financiar a adoção do ISDB-T nos demais países sul-americanos (exceto a Colômbia, que optou pelo sistema europeu). Ou seja, estamos financiando a adoção de tecnologias japonesas por países sul-americanos. E o máximo que vamos conseguir é a instalação de “montadoras” japonesas no Brasil, que trarão seus kits para serem montados aqui e exportados para nossos vizinhos. O lucro dessas “montadoras”, claro, será enviado para fora, a fim de pagar royalties às matrizes.

Crime de lesa-pátria

Mas, os radiodifusores, como sempre, já pensam além. Estão de olho na faixa de espectro que sobrará com o fim da transmissão analógica da TV aberta. Essa mesma faixa pode ser utilizada para disponibilizar banda larga à população, mas os radiodifusores querem permanecer com este espectro, embora não consigam dizer claramente o que farão com ele. E, discretamente, começam a sinalizar que não terão como cumprir o prazo de 2016 e que precisarão de mais tempo para desligar a TV analógica.

Sob qualquer ângulo que se olhe, a digitalização da TV aberta é um fracasso. Não desenvolvemos tecnologias nacionais e a única possível vai chegar tarde. Estamos pagando para que os brasileiros e os demais sul-americanos tenham acesso a uma tecnologia que não é nossa. Não haverá multiprogramação, nem tampouco interatividade. Ou seja, a propalada alta definição (na verdade, 720p ou 1080i) nos chegará pelos mesmos radiodifusores, com a mesma programação de qualidade duvidosa.

Mas, o mais fantástico de tudo, a cereja do bolo, é que aqueles que, em nome do Estado brasileiro, foram responsáveis por este conjunto de equívocos (para dizer o mínimo) continuam como servidores públicos, alguns gozando de relativo prestígio, sem que ninguém os responsabilize por esse crime de lesa-pátria. E sabe-se lá que boas notícias ainda nos trarão…

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[Gustavo Gindre é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes; foi membro eleito do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) por dois mandatos]