Não é de hoje que o jornalismo virou ringue na disputa pelas audiências das emissoras de televisão. Nas mais recentes batalhas, as duas maiores emissoras de televisão brasileiras trouxeram o esporte, ou melhor, as transmissões esportivas, para o centro da disputa. Só que nessa luta quem tem sido constantemente golpeado é o telespectador, muitas vezes com silenciamentos inexplicáveis e outras, com aberrações em formato jornalístico. Na primeira categoria, o exemplo mais emblemático são os Jogos Pan-Americanos de 2011, em Guadalajara, praticamente esquecidos pela Rede Globo. Na segunda, a recente campanha da Rede Record contra o MMA (sigla em inglês para Mixed Martial Arts, ou Artes Marciais Mistas), cujo ápice foi uma reportagem com mais de 14 minutos exibida no último dia 04 de março.
A matéria, exibida no quadro “Reportagem da Semana”, do programa Domingo Espetacular, já inicia dizendo a que veio, quando a apresentadora explica: “Você vai entender agora por que a violência dessas lutas pode levar à morte ou a sequelas por toda vida.” No vídeo, cenas de violentos golpes nos quais os lutadores têm suas cabeças socadas pelos adversários ou são jogados fortemente contra o chão são repetidas à exaustão, enquanto a repórter Heloísa Villela relata o drama de um atleta norte-americano que ficou paraplégico e especialistas afirmam que a atividade causa sequelas irreparáveis aos seus praticantes. No texto, a jornalista sintetiza a argumentação: “Um vale-tudo com juiz, categorias e algumas regras; apesar de tudo isso, a violência do MMA ainda impressiona.” Nenhuma referência foi feita a outros esportes, como o boxe (modalidade olímpica, que a emissora vem destacando em função dos direitos de transmissão dos Jogos Olímpicos) e até mesmo o futebol, nas quais acidentes similares resultaram em traumas irreversíveis para alguns atletas.
Lutador na novela
A emissora, entretanto, não pareceu se impressionar com a violência dos combates quando resolveu exibir a série de reportagens “Brasil no Ringue”, em seu principal telejornal, entre os dias 21 e 25 de março de 2011. Na época, diversos esportes de luta foram apresentados, mas todas as matérias enfatizaram o MMA como a modalidade que mais cresce e o foco se concentrou nas oportunidades de ganho financeiro que ela traz. Sobre os perigos da atividade, o texto de Lúcio Sturm em uma das reportagens resume a angulação da edição: “Soco, chute, mata leão. Golpes que impressionam e chocam quem assiste, mas os lutadores são preparados para suportar a dor. Para quem pratica, luta não é violência. É esporte, é paixão.”
O desconforto da Rede Record com o MMA também não foi destacado quando entrou na disputa com a Rede Globo e a Bandeirantes, entre outras emissoras de TV aberta, pelos direitos de transmissão do Ultimate Fighting Championship (UFC) no Brasil. Criada em 1993, a UFC é a maior e mais importante organização promotora de lutas de MMA no mundo. Em 27 de agosto de 2011, o UFC no Rio de Janeiro chamou a atenção da mídia pela repercussão junto ao público. Depois de quase dois meses de negociações, o UFC fechou contrato de exclusividade com a Globo, que transmitiu o primeiro combate ao vivo no dia 12 de novembro, entre o americano Cain Velasquez e o brasileiro Júnior Cigano pela disputa do cinturão dos pesos pesados. Antes disso, já havia também inserido um personagem lutador de MMA na novela de maior audiência de sua grade, reforçando a meta de popularizar cada vez mais a modalidade.
“Perder faz parte do jogo”
Sem a pretensão de discutir o mérito do MMA como esporte e tampouco a integridade das estratégias de marketing das emissoras televisivas brasileiras, minha questão é identificar os reais perdedores nesse combate. Em primeiro lugar, perde o jornalismo enquanto instituição, incluindo aí os séculos de luta para construir uma imagem da seriedade e neutralidade, em substituição ao uso político que era feito dos veículos. A Rede Record faz isso na série apresentada em março de 2011, mas surpreendentemente, um ano depois, a notícia recebe angulação completamente diversa. Será que o MMA mudou ou foi a perspectiva do jornalismo praticado pela emissora que reduziu seu foco?
Não quero defender com isso a falsa ideia da notícia como um “relato da realidade”, discurso há muito superado e substituído pela noção de construção a partir de uma angulação específica. Mas lembrar que, mesmo assumindo que toda notícia é uma construção, a busca do jornalista deve ser sempre apresentar os fatos de modo mais amplo possível, oferecendo versões e contrapontos para que o público tenha os elementos necessários na construção da sua posição a respeito do assunto.
Por falar em público, esse é o verdadeiro e maior perdedor. Perde quando tem a informação sonegada por uma emissora que, não obtendo o direito de transmissão de um evento, resolve simplesmente ignorá-lo para não utilizar imagens da sua concorrente. Perde quando recebe uma informação parcial, que mostra apenas um lado da notícia ou dá destaque exagerado a algum aspecto, seja ele negativo ou positivo. E, embora a máxima recorrente no mundo do esporte afirme que “perder faz parte do jogo”, com a competição desenfreada as emissoras de televisão brasileiras têm esquecido que o verdadeiro juiz é o telespectador. Somente ele detém o poder de mudar o canal, ou desligar o aparelho e procurar algo melhor para fazer. Nessa luta, não pode valer tudo!
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[Ana Spannenberg é jornalista, mestre em Comunicação e Culturas Contemporâneas (UFBA), doutora em Sociologia (UFBA) e professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia]