Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

1964 – 1º de abril

Nos começos de 1964, instalara-se no cenário nacional a mesma divisão esquemática que cindira a Convenção francesa, quase dois séculos antes. Fora da dicotomia esquerda-direita – que transformava o debate político e cultural numa espécie de partida de futebol em que a maioria torce e alguns poucos jogam –, qualquer outro tipo de assunto era tido como conversa para boi dormir. Hipérbole rural, gostosamente bucólica, que caía em desuso, substituída pela divisão mais atualizada entre alienados e engajados – por sinal, outro galicismo que tardiamente se incorporava na linguagem.

Aproveitando o recesso parlamentar e criando uma pressão incontrolável sobre a sessão legislativa de 1964 que se inauguraria dias depois, foi marcado o comício-monstro para 13 de março, na praça da República, diante da Central do Brasil, no Rio de Janeiro – zona de grande concentração popular, sobretudo na hora do rush. E no coração mesmo da cidade-estado da Guanabara, que tinha Carlos Lacerda como governador e prefeito ad hoc – por acaso ou propósito, o mais violento e letal adversário de Jango e de seu programa de reformas. Ao lado da Central do Brasil situava-se o então Ministério da Guerra – que não era exatamente um terminal ferroviário, mas funcionava como uma central mais importante, início e fim de muitas viagens pelos acidentados trilhos institucionais.

Em Ipanema, na rua Nascimento Silva, um general quase desconhecido perdeu o sono após ouvir pelo rádio os discursos daquele comício. Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Humberto de Alencar Castelo Branco acompanhava os movimentos políticos da época, mas o fazia com a cautela que um de seus amigos, o coronel Vernon A. Walters, adido militar da embaixada dos Estados Unidos, considerava “digna de um membro de estado-maior”. Alguns militares, mais interessados na deposição de João Goulart, achavam que tanta cautela era apenas a clássica posição de ficar em cima do muro para ver no que iam dar as coisas.

Outro poder

Depois de ouvir os principais discursos do comício, começou a esboçar um texto que seria transformado, a 20 de março, em “Instrução Reservada dirigida aos Exmos. Srs. Generais e demais militares do Estado-Maior do Exército e das Organizações Subordinadas”. Não era, ainda, um apelo ao rompimento definitivo das Forças Armadas com o governo. Castelo Branco gastou parte de sua noite na redação do documento, que é sucinto, bem exposto e, como diria o general Mourão Filho em seu diário, “não chovia nem molhava”. No Palácio Laranjeiras, João Goulart chegou esbodegado pelo cansaço e pelas emoções do comício. Vestiu o pijama e declarou à sua mulher: “Estou pregado!” E dormiu.

O fim de março se aproximava. A última semana do mês seria de recesso: a Páscoa cairia no dia 29.

A partir do dia 25, quarta-feira santa, o país na certa pararia – e a crise também. O santificado hiato faria bem a todos. Membros do próprio governo, como Jango e Abelardo Jurema, ministro da Justiça, partiriam para descansar em fazendas de amigos. Diversos dispositivos militares estavam em alerta para desfechar um movimento. Alguns contra, outros a favor do governo. Estes, porém, limitavam-se a uma ficção na qual toda a esquerda acreditava.

De Juiz de Fora, em companhia de sua mulher, o general Olympio Mourão Filho, comandante do 4º Exército, foi visitar igrejas em Ouro Preto. O governador Magalhães Pinto, de Minas Gerais, mais esperto do que o general, costurava a conspiração golpista. Afinal, todos os dias são santos, dias do Senhor -ele não iria parar por causa de uma semana santificada ou não.

Na Barra da Tijuca, uma equipe dirigida por Glauber Rocha tomava as últimas cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol – mar virando sertão, sertão virando mar. Brigitte Bardot passeava pelas praias de Búzios. Os grupinhos de jovens, que começavam a assumir uma outra espécie de poder, ouviam o mais espantoso fenômeno musical daquela época: os Beatles, uns rapazes de Liverpool que, agrupados num conjunto de rock, cantavam “A Hard Day's Night”.

Começava a noite de um dia muito difícil.

***

[Carlos Heitor Cony é jornalista, escritor e colunista da Folha de S.Paulo]