Em sua cruzada contra o PLC 122/2006, o pastor Silas Malafaia tem tido a sorte de encontrar debatedores que, infelizmente, não são preparados para discutir e, com toda sua retórica, acaba passando por um expert no assunto. Mas basta um olhar mais apurado e se vê que não é bem assim. No artigo “Resposta a uma matéria tendenciosa (a propósito do artigo do Sr. Diogo Molina)”, mais uma vez, ele deturpa totalmente o objetivo do PLC 122/2006. Em primeiro lugar, o pastor, desde 2009, ignora que os artigos que ele tanto gosta de citar já não fazem parte do texto atual do projeto. Saberia da mudança caso fizesse uma coisa simples: consultar a tramitação do projetono site do Senado.
Concordo que na versão original alguns artigos tinham duvidosa constitucionalidade, mas já foram corrigidos, ao contrário de certos projetos da bancada evangélica, tais como suspender, por meio de decreto legislativo, a decisão do STF sobre união estável homoafetiva (apresentado duas vezes pelo líder da bancada evangélica, deputado João Campos, e duas vezes rejeitados por ofender a Constituição!) e, ainda, convocar plebiscitos para decidir a respeito dessa temática, instituir o programa nacional Papai do Céu na Escola, construção de templos com recursos do FGTS, dentre outras sandices.
A versão atual, considerando o recuo da senadora Marta Suplicy após críticas do movimento LGBT, tem apenas quatro artigos e não há nenhuma pena de 02 a 05 anos de reclusão. As penas originais da Lei Antirracismo (Lei nº 7.716/89) são mantidas. Em segundo, o tal art. 8º-B merece que seja explicado para o pastor, que não conseguiu entendê-lo: se a manifestação de afeto é permitida a um casal heteroafetivo, deve ser permitida a um casal de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs). Direitos iguais: nem mais nem menos. E mais: quando o projeto fala em “orientação sexual” (orientação afetivo-sexual por pessoas de diferente, igual ou ambos os sexos), nisto estão incluídos também heterossexuais, daí ser descabido falar em privilégios para LGBTs.
A tese de que se nasce religioso
De qualquer jeito, discutir artigos que sequer existem é perda de tempo… Ou seria uma manobra para desviar o foco do texto atual que, salvo a subemenda da senadora Marta Suplicy, é tido como constitucional por renomados constitucionalistas (Virgílio Afonso da Silva, Conrado Hübner Mendes, Octavio Luiz Motta Ferraz) e dois ministros do STF (ministro Marco Aurélio Mello e outro que falou em caráter reservado) (Folha de S.Paulo, 22/12/2010)?
O objetivo de incluir LGBTs na lei que fala de “raça” não é “incoerência”. O pastor Malafaia evitaria recorrer a um argumento tão falacioso caso se desse ao trabalho de saber o significado da palavra “analogia”: segundo o dicionário Michaelis (1998), trata-se de “semelhança de propriedades”, “semelhança em algumas particularidades”. São semelhanças existentes entre coisas, seres de naturezas distintas. A ciência ainda não pode dizer com certeza se alguém nasce homossexual, mas também não pode afirmar categoricamente o contrário (como ele o faz!), embora pesquisas, no geral, indiquem uma confluências de inúmeros fatores internos e externos. Mas a Organização Mundial da Saúde e organizações de psiquiatras e psicólogos ao redor do mundo já não consideram doença a homossexualidade.
Já que o pastor não aceita a homossexualidade como fenômeno normal da sexualidade, quero lembrar que “religião”, hoje protegida na Lei Antirracismo, também não é condição inata e foi incluída na lei (e com isso concordo!) porque religiosos foram, ao longo da história, um grupo discriminado e sistematicamente perseguido, tal qual negros e judeus. E é exatamente por ser um grupo social histórica e sistematicamente discriminado que LGBTs, assim como religiosos, devem ser incluídos na Lei Antirracismo. Ou passará o pastor a defender a tese de que se nasce religioso ou, pior, que existe uma ordem cromossômica para religiosos?
Afirmação falaciosa
Esse argumento é uma sinuca de bico: se se fala em “escolha/opção sexual”, em “comportamento” de LGBTs e daí se conclui ser ilegítima inclusão desse grupo na Lei Antirracismo, automaticamente se reconhece que “religião” e “procedência nacional” também não deveriam estar na lei porque são prática/conduta e escolha (ainda que dos pais), respectivamente; contudo, se se alega que “religião” e “procedência nacional” devem, sim, ficar na lei porque indicam grupos histórica e sistematicamente discriminados (com o que concordo!), forçosamente se reconhecerá o argumento justificando inclusão dos LGBTs. Não há meio-termo.
Não é apenas o movimento LGBT brasileiro que faz essa comparação. O Parlamento europeu considera homofobia equiparável a racismo, xenofobia, antissemitismo, sexismo (“Resolução sobre a homofobia na Europa”- 2006), bem como a ONU (“Informe do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos”, de 17 de novembro de 2011 – em inglês). Ademais, LGBTs são protegidos por leis que combatem os chamados “crimes de ódio”, motivado pela raça ou religião, com origem em países como Estados Unidos (“Matthew Shepard/James Byrd, Jr., Hate Crimes Prevention Act of 2009”), Andorra, Bélgica, Canadá, Croácia, Dinamarca, Espanha, França, Holanda, Islândia, Luxemburgo, Escócia, Grécia, Lituânia, Portugal, Reino Unido, Romênia, Suécia. O PLC 122/2006 não é proposta inédita no mundo.
A afirmação de que “se alguém se sente ofendido, seja homo ou heterossexual, existem Leis para isto. Se alguém se sente agredido seja homo ou heterossexual, também têm leis para isto” é falaciosa. Heterossexuais não são agredidos verbal, psicológica e fisicamente – e até mesmo assassinados – por serem heterossexuais, mas LGBTs, só por serem quem são, sofrem esses tipos de violência.
Punir crimes de ódio
Na mesma linha dessa falácia de falsa analogia, o pastor compara o número de mortes de LGBTs com o número total de assassinatos em geral. Nestes crimes, as motivações são comuns (rixas, latrocínios, crimes passionais, tráfico etc.); já contra LGBTs, a motivação, direta ou indireta, é o simples existir. Analogamente, é como Hitler fazia: matar judeus só por serem judeus.
Curiosamente, o pastor Malafaia acaba reforçando meu argumento quando compara os índices de assassinatos de LGBTs com os de vítimas de violência doméstica (260 x 300). Então, se a Lei Maria da Penha se justifica pela especificidade da violência sofrida por mulheres no ambiente doméstico, está justificado o PLCC 122/2006, pela especificidade da violência que também os afeta.
Pastor Malafaia, desafio o senhor publicamente a um debate na TV, jornal, rádio, sobre o PLC 122/2006. Não precisaria mais do que 20 minutos para desmontar seus débeis argumentos, muitos dos quais já caíram por terra com este texto.
O PLC 122/2006 não pretende nada além de punir os crimes de ódio homofóbico que vitimam centenas de LGBTs todos os anos no Brasil, a exemplo do menino Alexandre Ivo, de 14 anos, assassinado após passar três horas sendo cruelmente torturado.
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[Thiago Viana é advogado e militante LGBT]