No encerramento do seminário “Conhecimento científico do jornalismo no Brasil: a contribuição de Alberto Dines”, o homenageado do dia – o jornalista, que em fevereiro completou 80 anos de idade – afirmou que seu constrangimento em ser o centro das atenções ficou amenizado por uma intervenção feita pelo colega Roberto Muylaert. O ex-presidente da Fundação Padre Anchieta, responsável pela TV Cultura, dissera que o encontro era menos um evento científico do que, antes de tudo, uma festa. “Fico extremamente feliz não em ser o homenageado, mas sim em ser o pretexto dessa festa, porque acho que o jornalismo é uma festa”, declarou Dines.
As datas redondas do aniversariante – 80 anos de idade e 60 de carreira – foram então o pretexto para que palestrantes e público, reunidos no dia 22 de março na sede da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), acabassem debatendo o jornalismo. Entre os consensos, o fato de que a atividade está em pleno processo de mudança – mais do que isso: passa por uma revolução. “O mundo mudou com o advento da internet comercial e com a popularização das tecnologias de informação e comunicação. O jornalismo, como reflexo do meio social em que é praticado, também mudou”, pontuou Luiz Egypto, redator-chefe do Observatório da Imprensa, mais uma das empreitadas lideradas por Dines. “A nova realidade implica o fim do monopólio de distribuição da informação de que desfrutavam as empresas jornalísticas.”
Para Egypto, a indústria jornalística demorou a entender que o cerne da atual crise de seu modelo, que até 20 anos era vitorioso e rentável, “reside no fato de que a notícia deixou de ser um produto fechado e acabado, e sua tendência é transformar-se em um processo”. Os modelos de negócios ainda não encontraram a forma ideal de se financiar num cenário em que “as audiências deixaram de ser um ente distante e assumiram-se como parte do processo de construção da informação, quando não como interlocutores diretos de veículos e de jornalistas”, acentua Egypto. Nos Estados Unidos, por sinal, está se consolidando o termo prosumer, que designa esse novo ator da arena pública midiática: não é apenas consumidor de informação, mas também produtor de conteúdos a disputar espaços com os veículos tradicionais e os jornalistas profissionais.
Método
“Hoje, qualquer pessoa que quiser pode distribuir informação. Essa é a grande mudança, e ela é extraordinária. Quem não entender a transformação será engolido ou descartado”, acredita Caio Túlio Costa, doutor em Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP e ex-professor da Faculdade Cásper Líbero (de onde pediu demissão há poucas semanas em solidariedade ao professor Edson Flosi. A direção da faculdade demitiu Flosi, que enfrenta um câncer, após 16 anos de atuação. A repercussão negativa do caso levou a Cásper a convidar o docente a reassumir suas funções, mas Flosi recusou a proposta).
O novo cenário alterou o papel de empresas e público, ressaltou Caio Túlio, primeiro ombudsman da Folha de S. Paulo, em 1989. Até antes da massificação da internet, a indústria jornalística dominava 100% da cadeia, ou seja: produzia a notícia, a imprimia e a distribuía. Hoje, ela depende de outras indústrias da comunicação, desde as que operam na transmissão de dados até as que produzem softwares ou os equipamentos que servem de suporte de leitura – celulares e tablets, por exemplo. “Mudou o modelo de negócios. O Google não tem nada de produção de notícias, mas soube se aproveitar do conteúdo dos outros”, disse.
Em meio a essa inundação de conteúdos e material informativo – ou desinformativo, em tantos casos –, continuará sendo muito necessária a presença dos mediadores. É aí que Caio Túlio aponta uma das dimensões da contribuição de Dines para a profissão: o jornalista precisa de método e técnica para realizar bem o seu trabalho. “Os cinco pilares visíveis da atuação de Dines têm a ver com isso: pesquisa, conhecimento, independência, criatividade e obstinação. O método e o embasamento científico são fundamentais”, defende. “As escolas de jornalismo têm pecado em não preparar os profissionais. Suas deficiências são brutais quando chegam ao mercado de trabalho.”
Jornalismo e comunicação não são ciências, repetiram quase unanimemente os palestrantes do seminário – inclusive o próprio Dines, ao dizer que “jornalismo é inspiração, atitude praticada com esmero de obra de arte e estudado com atitude e método científicos”. Porém, incorporar os métodos das ciências humanas, “adaptados e ressignificados para a prática jornalística de profundidade”, ajuda a produzir reportagens que perdurem no tempo pela sua qualidade, apontou Sérgio Vilas-Boas, jornalista, escritor e doutor em Comunicação pela USP.
O papel do jornal
Vilas-Boas chamou a atenção para o fato de que Dines exercitou essas práticas ao escrever a biografia de Stefan Zweig (Morte no paraíso), cuja primeira edição é de 1981 e foi relançada em 2004 com quase o dobro do tamanho da versão inicial. Os jornalistas fazem boa contribuição ao gênero da biografia porque não se atêm tanto aos arquivos classificados, utilizam mais fontes orais, são mais atentos às contradições e lacunas na história de seus personagens e trabalham de forma mais “desengessada” do que pesquisadores de outras áreas das ciências humanas, considera. “Morte no paraíso é o primeiro título de uma safra de biografias escritas por jornalistas brasileiros e que, no começo da década de 1990, tinha vários títulos entre os mais vendidos, como Estrela solitária, de Ruy Castro, e Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais. E Dines se gaba disso”, considera Vilas-Boas.
Outros participantes do seminário ressaltaram que Dines sempre defendeu a importância de não parar nunca de estudar e de refletir sobre a própria atividade. Carlos Eduardo Lins da Silva, doutor em Comunicação pela USP, lembrou a experiência do homenageado quando lecionou como professor visitante na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, em 1974. “Dines percebeu, ao estudar e visitar as redações americanas, que o jornalismo poderia melhorar muito se se apropriasse dos métodos e regras das ciências sociais, e elas poderiam ganhar se aproveitando da criatividade e do espírito inovador do jornalismo”, disse Lins da Silva. “Dines nos ensina e propõe a fazer a soma da experiência e da reflexão com método. Ele começa a fazer isso no Brasil antes dos outros.”
A carreira de Dines é exemplar da fusão entre educação, reflexão, pesquisa e prática, salientou Eugênio Bucci, professor da ECA, que falou no seminário sobre o livro O papel do jornal, publicado em 1974 e reeditado desde então, transformando-se num clássico da literatura brasileira sobre jornalismo. Para Bucci, a discussão do livro na época de seu lançamento – a “disputa” entre a televisão e o jornal impresso – se mantém atual. “Um sistema oferecia informação supostamente de graça, enquanto outro era pago. Essa competição está posta hoje”, afirmou. “A atividade jornalística, para existir, precisa ser apoiada e sustentada pela sociedade, mais do que pelo Estado ou pelo mercado. Dines já dizia no livro que o leitor, o ouvinte e o telespectador são os verdadeiros donos dos veículos. O jornalista trabalha para esse cidadão com quem dialoga.”
Problemas novíssimos
Nem tudo são flores na revolução digital no jornalismo, é claro, e os participantes do seminário também se ocuparam disso. Fernando Gabeira – que destacou a criação do Departamento de Pesquisas do Jornal do Brasil, comandado por Dines na década de 1960, classificando-o como “uma espécie de Google da era analógica” – salientou que a internet trouxe “problemas novíssimos”: “Já tínhamos uma resignação com o erro. Agora a possibilidade de erro ficou muito maior, com as coberturas em tempo real”, disse.
Outra realidade nova é que a tecnologia obrigou a uma produtividade muito maior do indivíduo. “O jornalista passou a trabalhar muito mais, virou quase um escravo”, afirmou. Gabeira usou a experiência pessoal como exemplo. “Voltei ao jornalismo e fui cobrir a eleição presidencial no Peru (em junho de 2011). Eu tinha que fazer, editar e enviar as fotos, escrever para o jornal impresso, atualizar o on-line, gravar e editar vídeos e ainda falar na TV on-line. Trabalhei por cinco pessoas, não tão bem quanto as cinco fariam, mas hoje só um tem que fazer.” Gabeira disse esperar que “as pessoas que escrevem bem sempre tenham seu lugar no jornalismo”, embora atualmente as exigências “multitarefa” sejam muito maiores.
Se o jornalismo sempre teve seus próprios pecados e deslizes éticos – como o uso privilegiado do espaço público para a defesa de interesses nem sempre sintonizados com os interesses públicos –, a profusão de vozes, discursos e fontes na arena midiática também aumenta os riscos de desinformação, manipulação e ações visando a benefícios particulares.
Eugênio Bucci cita os americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel, autores de Os elementos do jornalismo, que, numa edição posterior à que foi lançada no Brasil (em 2003, pela Geração Editorial), “falam do dever do cidadão que participa dessa teia jornalística de observar certas exigências éticas”. “Mas isso é uma intuição ainda, não é nem de longe uma solução e nem é mandatório. Cada vez mais na internet vai se revelando que diante dessa imensa oferta de conteúdos supostamente informativos o cidadão se pergunta em quem pode acreditar e tenta buscar, por assim dizer, um selo de confiança. Isso aumenta e não dilui o valor das redações independentes. O grande problema hoje é como vamos financiá-las”, conclui o professor da ECA.
“Preciso entender o que faço”
Resumir a trajetória de Alberto Dines não é fácil – tanto que o seminário na Fapesp dividiu a tarefa entre vários palestrantes, que se ocuparam das diversas faces da produção do jornalista nas redações, na academia, na literatura, no mundo digital etc. Dines queria enveredar pelo cinema, e foi como crítico que estreou nas páginas da revista A cena muda, em 1952. Trabalhou depois em Visão, Manchete, Última Hora, Fatos & Fotos e Diário da Noite. Em 1962 assumiu como redator-chefe do Jornal do Brasil, consolidando uma das mais importantes reformas do jornalismo brasileiro. Em 1963 criou e ocupou a cadeira de Jornalismo Comparado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Em 1965 lançou pelo JB os Cadernos de Comunicação e Jornalismo, com textos de reflexão e crítica sobre a área.
Dines manteve o exercício da crítica jornalística ao longo dos anos 1970, 80 e 90 na Folha de S.Paulo (com a coluna “Jornal dos Jornais”), em O Pasquim e na revista Imprensa. Entre o final da década de 1980 e começo de 90, residiu em Lisboa como diretor do Grupo Abril em Portugal. De volta ao Brasil, foi o responsável pela criação do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor) da Unicamp, em 1994, e do Observatório da Imprensa, na internet, dois anos depois. O Observatório ganhou uma versão na TV em 1998 e no rádio em 2005.
Em sua fala, que encerrou o seminário, Dines afirmou que sua “modestíssima contribuição” ao conhecimento científico do jornalismo no Brasil se resume “apenas ao atendimento de um feixe de curiosidade”: “Preciso entender o que faço, quero perceber o que esperam de mim, tenho a obrigação de descobrir, nos 40 mil anos que nos separam da arte rupestre, os elementos que ajudarão os nossos sucessores a livrarem-se das miragens do progresso e das ilusões da velocidade”.
Dines citou Hipólito da Costa, criador do Correio Braziliense, em 1808, como “o patriarca da nossa profissão”. “Logo na primeira página da primeira edição, ofereceu aquilo que hoje chamaríamos de plataforma editorial, uma profissão de fé, ou a fé de uma profissão que sequer tinha o nome jornalismo. Escreveu Hipólito: ‘O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela’. Depois afirma que ninguém é mais útil do que aquele que destaca os acontecimentos do presente e projeta os contornos do futuro. Refere-se aos redatores das folhas públicas, isto é, a nós, os jornalistas.”
No livro O papel do jornal, Dines incluiu uma epígrafe que chamou de “reveladora”: “Ideias complexas são construídas sobre ideias muito simples. Estas são o resultado de impressões, fruto de nossas experiências”. “Quem diz isso é David Hume, filósofo iluminista, um dos pais do empirismo moderno, o primeiro a aplicar métodos experimentais para estudar fenômenos mentais. Hume foi meu padrinho naquela incursão, assim como Hipólito foi e está sendo meu padrinho nas fases sucessivas”, disse. “Além de responder ao embargo profissional imposto pelo regime militar, o livro pretendia lembrar aos companheiros de profissão e aos empresários da indústria que só havia uma alternativa capaz de enfrentar simultaneamente o brutal aumento do preço do papel e os avanços tecnológicos da televisão: essa ‘bala de prata’ era a aposta na qualidade do jornalismo impresso.” A aposta na qualidade continua de pé, sustenta.
Para Dines, um dos pontos mais importantes na trajetória dos Cadernos de Jornalismo e Comunicação era cumprir o papel educativo de fomentar a inteligência. “Não podíamos questionar a censura, mas fomentávamos o debate e a vontade de pensar e saber”, considera.
Dines lembrou ainda que, em outubro de 1975, publicou na coluna “Jornal dos Jornais”, na Folha, a informação de que Vladimir Herzog, diretor de Jornalismo da TV Cultura, estava sendo ameaçado pela extrema direita. À frente do coro estava Cláudio Marques, “que frequentava a Folha e era amigo do Boris Casoy”. Em sua coluna no Shopping News, Marques vinha publicando que Herzog corria o risco de passar uma temporada na hospedaria do “Tutoia Hilton” – referência à sede do DOI-Codi paulista, na rua Tutoia, no Paraíso.
“Eu não conhecia o Vlado, mas o Zuenir Ventura conhecia e pediu que eu desse a nota. Dei a notícia uma semana antes, numa tentativa de protegê-lo, mas infelizmente não conseguimos salvar a vida do Vlado”, lamentou Dines. “Não foi um acidente. Havia uma conspiração, e ele foi preso e morto”, concluiu o jornalista.
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[Paulo Hebmüller, do Jornal da USP]