Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

A construção da realidade

Uma questão que embora tantas vezes estudada prossegue atual, desafiadora e instigante. Até mesmo por ser um problema que costuma colocar em lados opostos o mercado e a academia. Por isso, precisamos discutir o assunto com o objetivo de construir pontes e, como diria o professor José Marques de Melo, “romper com os guetos acadêmicos” e propiciar “uma geração de estudos críticos, utilitários e inovadores”.

A questão dos efeitos dos meios de comunicação de massa tem ligação direta com a forma como estes constroem a realidade social, nosso tema. As pesquisas nos mostram que já ultrapassamos a etapa em que se acreditava num efeito assimétrico dos meios de comunicação, em que um sujeito ativo emite os estímulos e um passivo é impregnado e só aí reage. Ou ainda, que exista um processo intencional por parte dos emissores na estratégia da comunicação. Ainda hoje há pessoas que imaginam que dentro das redações exista um departamento de manipulação onde se decide como o povo será conduzido por interesses ideológicos, ou como o meio de comunicação irá servir a determinados interesses de agentes sociais com influência política e econômica. Posso assegurar que até hoje não descobri onde funciona esta “salinha” da maldade. E fico profundamente irritado quando dizem que o jornal A ou B estão “vendidos”. Muitas vezes quem assim acusa o faz por não ver o “seu interesse” prioritariamente contemplado.

Esta forma de pensar faz parte de um paradigma superado nos estudos e nas pesquisas de comunicação. Já se sabe que os efeitos das mensagens não se dão a curto, e sim, a longo prazo. Há uma consciência de que a comunicação não intervém diretamente e de forma explícita no comportamento do homem mas, aí sim, influencia o modo como o destinatário organiza a sua imagem do mundo em que vive. Portanto, já não são efeitos pontuais, ligados ao que foi dito especificamente numa mensagem, mas efeitos cumulativos, sedimentados no tempo. Os efeitos que a comunicação provoca na realidade social são obtidos ao longo de um processo cumulativo. Isto é o que diz a “teoria dos efeitos limitados”. Faz parte desta teoria a crença que entre estes efeitos está o de construir ou modificar a imagem daquilo que é ou não importante num contexto social.

Não há consumidores passivos

Esta é uma discussão particularmente rica num ano eleitoral onde, nos bastidores da política e da comunicação (não a de massa, mas a das assessorias) começam a ser construídas as estratégias que irão pautar candidatos e suas aparições junto ao eleitorado. As estratégias para elencar os temas prioritários para as campanhas e as propostas eleitorais. Em outras palavras, a decisão de onde se apostar e como convencer o eleitor de que aquilo que se escolheu como bandeira é o mais importante nestas eleições.

Por seu lado, a influência dos meios de comunicação de massa, nestes períodos se dará à medida que for algo mais do que um simples canal através do qual desfilarão campanhas e propostas de candidatos. Os meios de massa é que irão referendar aquilo que de fato terá valor no debate eleitoral. A violência, o tráfico de drogas e a ética na política, com certeza serão temas de grande valor nestas eleições. Pode-se dizer isso, exatamente porque a construção destes discursos já está sendo sedimentada no cidadão/eleitor. Portanto, é isso que os meios de comunicação fazem quando falamos de “construção da realidade”: a longo prazo constroem crenças, organizam fatos e, por consequência, formam opiniões. Se esta influência for exercida de maneira responsável, ética, honesta e comprometida com valores cidadãos, não há problema a meu ver. Acredito que os jornais podem influenciar desde que o façam de maneira explícita, clara. Foi assim nos episódios que marcaram as denúncias contra o crime organizado que se apoderara do poder no Espírito Santo em todas as esferas públicas. Os jornais influenciaram, sim, a opinião pública. Assim como influenciam nas recentes denúncias envolvendo o contraventor Carlinhos Cachoeira e autoridades do país. Mas haverá de ser diferente?

Concordo que os meios de comunicação acabam por construir a realidade social, mas de uma forma diferente daquele que acreditamos durante muito tempo, amparados por convicções de natureza ideológica, como nos fez crer, por exemplo, a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Assim como não acreditamos mais em consumidores absolutamente passivos da informação, não podemos nos cobrar uma postura absolutamente neutra na ação jornalística, ainda que isso fosse possível.

A espiral do silêncio

Os meios de comunicação de massa são herdeiros daquilo que se convencionou chamar de espaço público. A publicidade das ideias e os assuntos de Estado se davam nos cafés europeus no século 18, para não ir mais longe e falar da ágora grega na antiguidade clássica. Ali se sabia de tudo num processo de comunicação interpessoal. O crescimento das cidades passou a exigir esferas públicas maiores e daí vieram os jornais. Os meios de comunicação de massa tornaram-se as novas ágoras e passaram a mediar e a legitimar a informação e o poder. Os meios de comunicação começaram a dizer como deve ser a vida na cidade. E mais, passaram a nos mostrar aquilo que sem eles já não teríamos a capacidade ou a oportunidade de conhecer. São os meios de comunicação que nos mostram os horrores da tortura nos presídios ou da violência doméstica. Que nos revelam os bastidores da política, as razões das crises econômicas, a corrupção dentro de um hospital público e até as pequenas mentiras de administradores públicas “caras de pau” que prometem e não cumprem. Mas também nos revelam coisas boas, como os avanços da ciência, o prolongamento da vida, a oportunidade de uma catadora de lixo de entrar para a universidade, como ocorreu recentemente na Universidade Federal do Espírito Santo, o reencontro de uma filha com um pai que não via há 50 anos. Muitos fatos que nem sempre mudam a nossa vida, mas que gostamos de saber que existem. Daí a construção de sua influência.

Precisamos construir as pontes entre as teorias que nos ajudam a entender este processo e a realidade dos meios de comunicação. A hipótese da agenda-setting, por exemplo, nos mostra como os meios de comunicação pautam o debate público estabelecendo graus de importância aos assuntos. Assuntos como a denúncia nos hospital do Rio de Janeiro ou as conversas secretas do Senador Demóstenes Torres ganham e perdem volume na audiência na medida em que são mais ou menos pautados. Esta é uma realidade. A hipótese da agenda-setting não defende que os meios de massa pretendam persuadir, mas destaca que a compreensão de grande parte da realidade social é fornecida ao público pelos meios de comunicação de massa.

Assim é, também, quando a teoria nos coloca diante da espiral do silêncio, em que o efeito é diferente. A análise aqui não se dá mais pelo que o meio de comunicação pauta, mas pelo que ele não pauta fazendo com que o assunto “esquecido” não ganhe o relevo que poderia ganhar de outra forma.

Enquadramentos manipulados e equivocados

Muitas das teorias nascem da observação empírica. É assim com o conceito do gatekeeper, o porteiro, o selecionador que vai definir que fatos vão virar notícias e entrar para o debate público. O gatekeeper é parte do fluxo da notícia dentro de uma redação. Selecionam-se notícias e também selecionam-se os enquadramentos. Quantas vezes já não vimos uma reportagem tratar das consequências que uma pequena passeata provocou para o trânsito sem antes dizer porque havia aquela pequena passeata. Neste exemplo o telespectador é levado a refletir sobre a consequência antes mesmo de conhecer a causa. Ou num exemplo clássico e até engraçado, a reportagem do jornal que gastou linhas e mais linhas dizendo por que um time perdeu, sem dar conta de esclarecer por que o adversário venceu.

Há editores, incapacitados a meu ver, que dizem para o repórter ainda na redação o que ele deverá trazer da rua. Mas é ilusão acharmos que o gatekeeeper é apenas o chefe, o editor, o representante da empresa. Muitas vezes está no repórter, no cinegrafista ou no fotógrafo que por uma opção consciente ou não, enquadram o assunto de mil maneiras diferentes muitas delas motivadas até por visões pessoais ou preconceitos em seu sentido mais amplo. Pode estar até mesmo na incapacidade operacional de se fazer uma entrada ao vivo do exato local do acontecimento. Feito em outro ponto, onde a viabilidade técnica permite, haverá provavelmente uma perda de informação ou um enquadramento equivocado do fato. E isto não foi previsto pelo gatekeeper da redação… Há um grande número de teorias que analisam e repensam todas estas formas de distorções identificadas no exercício prático da profissão. E muitas delas apontam para as “distorções involuntárias” bem diferente da ideia de manipulação.

Devemos repensar os cotidianos critérios de noticiabilidade? Sim, há estudos interessantes como o da pesquisadora americana Pamela Shoemaker que aponta até mesmo para questões biológicas que explicam o interesse público por determinados tipos de abordagens, inclusive as sensacionalistas ou violentas. Não vou me alongar nessa abordagem, pois entraria num outro mundo de teorias tão polêmicas como apaixonantes. Na minha experiência de 28 anos de profissão posso lhes assegurar que vi e ouvi muita coisa não só na minha prática como na prática e nos relatos de colegas. Há direcionamentos intencionais, há orientações e escolhas mal feitas, há enquadramentos manipulados e enquadramentos equivocados. Mas há mais acertos do que erros.

Será esta realidade real?

O novo mundo da comunicação digital, onde predominam redes que se cruzam, interação e interatividade cada vez mais intensas, embora ainda tímidas, nos remetem para a possibilidade de uma construção coletiva da informação. Isso poderá desencadear uma oxigenação dos meios de comunicação jamais vista. Na pesquisa que estou desenvolvendo defendo a hipótese de que a ampliação da participação do cidadão nos meios de comunicação proporcionará a qualificação de seu conteúdo e que tal condição irá colaborar para a formação de um conhecimento coletivo que vai influenciar as empresas de comunicação, lhes possibilitando maior representatividade dos diferentes segmentos sociais de seu público. Afinal, participação tem natureza política, é poder. E a democracia pressupõe o equilíbrio de poderes. Ainda que estejamos falando de emissores e “receptores”. Portanto, interagir é participar do debate e influenciar decisões.

Poderemos fazer algumas perguntas que poderão contribuir para este debate: afinal, o que é a realidade? O que é a realidade construída? Como seria uma realidade sem a influência dos meios de comunicação?

São perguntas sem respostas? Pode ser que não. A construção coletiva do noticiário que acabo de me referir poderá nos revelar uma outra realidade. Mas pergunto, será esta realidade, de fato, real? Ou sempre haverá interesses, visões e culturas individuais a interferir no mundo onde estamos?

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[Carlos Tourinho é jornalista, editor da TV Globo (ES), professor e doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho]