Em 2000, parte do Parlamento Europeu esteve reunido para discutir e votar a favor da realização de um relatório que procurava analisar e compreender uma prática que vinha sendo realizada por alguns países ao redor do globo, desde o final da Segunda Guerra Mundial, de captura de dados planetariamente. O chamado sistema Echelon de escuta e vigilância global fora aí pela primeira vez alvo de especulações de fontes oficiais. O estímulo para a investigação vinha da constatação, cada vez mais segura, de que cinco países – Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia – estavam utilizando sistemas de interceptação de satélite para não somente apurar dados militares e de segurança nacional, mas, muito provavelmente, para ter vantagem econômica sobre outros países ou empresas, assim como coletar qualquer espécie de informação que lhes fosse útil, inclusive de civis.
Isto remete à questão dos dados captados por um sistema midiático que se espalha em todos os cantos e sobre tudo. Nessa situação, muitos deputados nem mesmo se mostravam inteirados a respeito da existência de tal sistema, situação que não surpreende, visto que o sistema é operado por agências de inteligência e seguridade, permanecendo no quadro dos assuntos escusos dos governos envolvidos. O panorama, contudo, não pareceu mudar muito, mais de 10 anos depois. Os governos não têm interesse de propagação desse conhecimento e muitos cidadãos são céticos ao depararem com essa possível realidade, indagando-se de que maneira o sistema poderia, de fato, interferir em sua vida privada. Não obstante, muitos ignoram que a simples existência de um sistema dessa natureza, utilizado também em escuta e vigilância de civis, já estará interferindo em seus direitos de privacidade e democracia.
As estações de monitoração
Diversas estações terrestres equipadas e construídas para tal fim compõem o sistema Echelon. São pelo menos 11 estações reconhecidas e expostas no relatório da União Europeia, mas é grande a probabilidade de existirem outros postos que operam com a mesma finalidade. Elas estão construídas e posicionadas de forma estratégica ao longo de quatro continentes – Europa, América, Ásia e Oceania –, visando a facilitar a comunicação com os diversos satélites que orbitam a exosfera, compondo um quadro de monitoração de alcance global. Estas estações estão, desde 1980, equipadas com antenas capazes de captar sinais de comunicação via Intelsat. Trata-se do primeiro sistema mundial de comunicação por satélite que pode interceptar qualquer espécie de informação que trafegue no globo, seja por meio da internet, do rádio, de e-mails, telefones, fax ou telex. Ou seja: o sistema não trabalha apenas para a monitoração de satélites, mas também de cabos e ondas de rádio.
Sendo a massa de comunicações efetuadas diariamente ao redor do globo gigantesca, o esforço necessário para filtragem da informação deve ser proporcional. Dessa maneira, mecanismos e sistemas de busca foram desenvolvidos para otimizar o trabalho. Nicky Hager, jornalista neozelandês que estudou o sistema e relatou sua pesquisa no livro Secret Power, New Zealand's Role in the International Spy Network (ainda sem tradução para o português), conta que o sistema Echelon trabalha segundo uma lógica de filtragem que seleciona mensagens que contenham palavras-chave pré-determinadas, que compõem o chamado Echelon Dictionary. As palavras podem tanto ser nomes e localidades, quanto assuntos específicos ou qualquer outra questão que seja do interesse dos grupos que operam o sistema.
Dessa maneira, tarefas são distribuídas entre as estações de monitoração. Há certos postos que interceptam satélites específicos, o que depende de suas posições geográficas. Por exemplo, uma estação de Waihopai, na Nova Zelândia, monitora satélites Intelsat localizados sobre o Pacífico, e outra de Sugar Grove, nos EUA, intercepta comunicações que estão sobre o Atlântico. Contudo, palavras-chave de interesse exclusivo de algum dos países, mesmo que a interceptação seja feita em estação fora de seu território, não serão reveladas às estações que a interceptarem. Destarte, é possível afirmar que o modus operandi é engendrado de forma a ser quase automático, visto que é todo processado e realizado através de computadores, mantendo o sigilo absoluto de tudo o que é procurado e encontrado.
Atividades, comportamento e preferências
Agora vem a pergunta: isso é legal, se todos têm direito à privacidade, em Estados que prezam pela democracia e a liberdade de expressão? O que a Constituição europeia aponta é que, em relação à circulação livre de dados e à proteção da privacidade no setor das telecomunicações, não é aplicado em caso de tratamento de informações ou atividades que tangem a defesa e segurança pública, incluindo o bem-estar econômico do Estado. Ou seja, constitucionalmente o Echelon não infringe as leis de direito, se aplicado a situações de segurança de Estado, uma definição por si só controversa. Sabe-se, contudo, que são os mesmos satélites que carregam informações de interesse do Estado, de empresas e companhias de natureza econômica competitiva e de civis que utilizam qualquer plataforma de comunicação tecnológica, estando a sua interceptação a alguns cliques de distância.
Como saber, então, se a utilização do sistema é, de fato, voltada apenas para a segurança? Utilizada de maneira irregular, essa tecnologia pode pôr em perigo a liberdade que cada indivíduo tem de se expressar e se posicionar contra ideias pré-estabelecidas, ou de fomentar qualquer espécie de movimentação que aja contra a “máquina”, pois todos os seus movimentos passariam a ser vigiados e as transgressões, punidas. Seria mais uma engrenagem da sociedade disciplinar que rastreia, detecta, castiga e corrige. Essa discussão também traz à tona questionamentos a respeito da tecnologia em geral, que estão presentes de forma massiva e modeladora nas sociedades atuais. O nível de exposição que possibilitam é gigantesco, facilitando o rastreamento de atividades, padrões de comportamento e preferências gerais. A questão é que os mecanismos estão dispostos. Só resta saber exatamente para que.
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[Valério Cruz Brittos e Jéssica M. G. Finger são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos; e graduanda do Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda na mesma instituição]