Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Hiperconsumo, um ideal exaltado

A recessão econômica por que passam Estados Unidos e Europa não afeta apenas essas regiões. As relações de importação e exportação determinam a boa saúde de um mundo interconectado que precisa de todos os órgãos funcionando bem. Ou pelo menos boa parte deles. Dentro dessa perspectiva, analistas explicam que a economia mundial depende, sobretudo, do humor do consumidor americano. Eles seriam o coração, portanto. Mas antes de discutir o reflexo deste consumo que move o mercado global, é interessante entender como ele é criado e o que o influencia.

Artigo do New York Times aborda exatamente essa questão. Sob o título “Spend, Spend, Spend. It’s the American Way” (Gaste, Gaste, Gaste. Esse é o Jeito Americano), o professor de economia Robert J. Shiller, da Universidade Yale, comenta que economistas sabem prever como as pessoas reagem às mudanças na política do governo, “mas na ausência de tal política, e quando a economia está em crise, eles não são muito bons em prever mudanças de gastos”.

Cita, então, o livro Beyond Our Means: Why America Spends While the World Saves (Além da nossa capacidade: Porque a América Gasta Enquanto o Mundo Poupa), que afirma que “a vontade de gastar é conduzida de forma mais destacada pela nossa reação a acontecimentos importantes na nossa memória coletiva, incluindo guerras e depressões, e que também depende do caráter nacional, o que difere entre países e através do tempo. Gastos, claro, são moldados por políticas governamentais deliberadas. Notavelmente, durante a guerra, os governos de todo o mundo começam frequentemente enormes campanhas públicas informativas para promover a poupança”.

Confiança aumenta

O livro explica que os Estados Unidos, no entanto, possuem certa exceção, já que mais do que em qualquer outro país, consumir é mais patriótico do que economizar. “Embora esses tipos de fatores mentais e morais sejam muito difíceis para os economistas avaliarem, eles podem ser de suma importância para o panorama atual”, conclui Shiller.

O apetite está voltando aos poucos. Pelo menos é o que indica o Índice de Sentimento do Consumidor da Thomson Reuters/Universidade de Michigan que subiu para 76,2, o maior nível desde fevereiro de 2011.

“Com esta confiança, os gastos dos consumidores devem permanecer apoiados no primeiro semestre do ano e suavizar o impacto da atividade industrial de resfriamento sobre a economia”, declararam analistas à Reuters.

Um ideal exaltado

Aquecer a indústria reverte a situação de crise e se apoia na sensação de felicidade criada ao redor do ato de comprar. Mas adquirir um produto qualquer traz satisfações verdadeiras ao ser humano? Bom, este é apenas um dos vários pontos discutidos no livro A Felicidade Paradoxal – Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo (ed. Companhia das Letras), de Gilles Lipovetsky. Filósofo e pensador do individualismo contemporâneo, o francês disserta sobre uma nova fase do capitalismo, a era da sociedade de hiperconsumo. A obra analisa o impacto sobre nossa existência e trata ainda da dependência mundial dos EUA, como citado no início deste texto. “O crescimento da economia mundial depende em grande parte do consumo americano, que representa um pouco menos de 70% do PIB dos Estados Unidos e quase 20% da atividade mundial”, afirma Lipovetsky.

De acordo com a apresentação do livro, “o sistema fordista, ao difundir produtos padronizados, cedeu o passo a uma economia da variedade e da reatividade na qual não apenas a qualidade, mas também o tempo, a inovação e a renovação dos produtos tornaram-se critérios de competitividade das empresas. Em paralelo, a distribuição, o marketing e a comunicação inventaram novos instrumentos com vista à conquista dos mercados”.

A sociedade de consumo massivo e exagerado gerou certos comportamentos que hoje estão incrustados no molde de vida de muitos. “Sustentado pela nova religião do melhoramento contínuo das condições de vida, o maior bem-estar tornou-se uma paixão de massa, o objetivo supremo das sociedades democráticas, um ideal exaltado em todas as esquinas”, completa Lipovetsky.

Garantia de vida

Não precisamos e, mais ainda, não devemos querer viver nessa era do hiperconsumo pra sempre. Esse modelo, exaustivamente associado ao sonho americano, já se mostrou fracassado e seria impossível de qualquer maneira que todas as pessoas, de todos ou vários lugares do mundo, consumissem como os cidadãos dos Estados Unidos.

Qualidade de vida fica cada vez mais próxima de sua própria definição, à medida que não mais se confunde com a palavra quantidade. Já que sustentabilidade deixa de ser uma definição teórica e sim condição para garantir a vida no planeta, produzir menos traz mais benefícios.

Estamos certos de que o planeta, obviamente, nos dá apenas o que pode produzir. Mas parece ser ainda complicado receber apenas o que precisamos realmente consumir.

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[Guilherme Baroli é jornalista, São Paulo, SP]