Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Deixem a luz entrar

Você não precisa ser jornalista para ter conhecimento do caso Mirella Cunha. Repórter do programa Brasil Urgente, da Band, da Bahia, ela entrevistou recentemente um jovem acusado de assalto e estupro. É dispensável entrar em detalhes da matéria, disponível no YouTube. Depois disso, Mirella se tornou a “Geni” deste 2012. Como na música de Chico Buarque, os brasileiros não titubearam em jogar pedra e cuspir na Mirella. E como apanhou a jornalista. Dos colegas, inclusive. O episódio ressuscita, contudo, uma discussão recorrente nos meios de comunicação: a ética. Para nossa infelicidade, o debate renasce sustentado em um conceito formal. Na prática, o que sindicatos e a Fenaj, a Federação Nacional dos Jornalistas, propõem é que regras éticas devem ditar os rumos da comunicação. Tal discurso, notadamente, carece de objetivo e de sentido explícitos. É impossível seguir adiante sem compreender que a comunicação de massa sustenta a sociedade moderna capitalista.

Para responder o que é ser ético, recorremos à terminologia adotada por Theodor Adorno e Max Horkheimer: indústria cultural. Na perspectiva do capital, a produção midiática trata as notícias como mercadoria, desestimulando o público a analisar criticamente a sociedade. O leitor/internauta/ouvinte/telespectador perde a condição de sujeito. É rebaixado a objeto, mero consumidor de notícias. Por isso, é importante ter em mente que os grandes veículos de comunicação exercem o papel decisivo na reprodução da ideologia dominante, na manutenção da ordem capitalista, no estabelecimento de padrões de comportamento das massas e determinam padrões de ação das pessoas. Nesse sentido, a comunicação de massa se transforma em fato social nos moldes definidos por Emile Durkheim, ou seja, é coercitiva e existe independente da vontade do indivíduo.

A causa do mau jornalismo

Não é possível atirar as pedras em Mirella com a bandeira da indeterminação e da especulação rasteira. Muito menos recorrer à transcendência e palavras de ordem sem efeito. Vamos além. Qual a chance da produção midiática ser desatrelada das metas mercadológicas? A Rede Bandeirantes, com o seu Brasil Urgente, está preocupada em um jornalismo ético, pautado no bem-estar e no esclarecimento público? Não. A Band é uma empresa e, logicamente, seu compromisso é o lucro. A qualquer preço.

Na versão nacional do Brasil Urgente, o apresentador José Luiz Datena assume o papel de narrador do apocalipse. Ao término de matérias – que envolvem pedofilia, assaltos, violência contra mulher e descaso do poder público, entre outros – surge o jornalista gritando contra tudo e todos. Os bandidos são qualificados como “canalhas, safados, trastes” etc. Autoridades têm a distinção da conciliação. O público, impassível, assiste ao teatro dos horrores. O lamentável Brasil Urgente não pauta suas reportagens pela importância social, definitivamente. Entram em cena os mandamentos funcionalistas do jornalismo. As reportagens, então, escancaram o desprezo rotineiro pela existência humana e o desrespeito com o povo. O show fica completo no instante em que o noticiário veste a máscara da imparcialidade. O artifício é utilizado para não mostrar à audiência que a Bandeirantes concorda com as barbaridades e, pior, coloca seu aparato para reproduzir a situação. Por que? É o lucro fácil e a rentabilidade assegurada.

Sindicatos e Fenaj, inocentemente, alardeiam armadilhas que escondem a origem das barbaridades que ocorrem na mídia brasileira. Falam, agora, em um bizarro Colégio Brasileiro de Jornalistas, conselho de classe vinculado ao Estado que serviria para punir jornalistas. O Sindicato dos Jornalistas da Bahia, em nota assinada pela presidente Marjorie Moura, mostra que atualmente as entidades que representam os jornalistas estão em uma ação contra os trabalhadores, e não por eles. “Enquanto os jornalistas não contarem com um Conselho de Classe, os profissionais que não respeitam os direitos humanos mais elementares não poderão ser punidos com moções ou suspensão da atividade”, diz o texto. A causa do mau jornalismo não está no jornalista. Definitivamente. Não podemos cobrar ética das empresas jornalísticas, muito menos que os veículos lutem por um mundo justo e fraterno. O compromisso dos órgãos de imprensa é o lucro e a audiência fácil.

Execração pública

Apontar o jornalista como responsável pelas mazelas da imprensa brasileira é de uma lorpice imensurável. Com a severidade de mandamentos e proibições, sindicatos e Fenaj deixam clara a fraqueza de seu caráter terapêutico no fortalecimento da categoria e reduzem ou acabam com as exigências das grandes lutas (combate ao assédio moral, salários dignos, fim do banco de horas, entre outros). Publicamente ligadas ao Partido dos Trabalhadores (PT) e aos governos de Luiz Inácio e Dilma Rousseff, as entidades não medem esforços em inocentar os patrões. O resultado da trama é conhecido. As vítimas (jornalistas) passam a ser os culpados. Evidentemente, há maus jornalistas. Porém, sublinhe-se, é criminoso ampliar essa definição de casos isolados para todos os profissionais.

A ética só pode ocorrer em ambientes que a pratiquem e a estimulem. Propostas indecorosas como “democratização da comunicação”, “Fóruns Nacionais/Estaduais para a democracia na imprensa”, todas patrocinadas por sindicatos e Fenaj, são mafiosas. Movimentos como esses apenas contribuem para apontar a decadência da mídia e asseguram a reprodutibilidade do que existe de mais nefasto no fazer jornalístico.

A execração pública de Mirella é grave. Não é possível ser conivente na achincalhação de uma companheira. Para o bem de todos, deixemos a luz entrar.

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[Pedro Blank é jornalista profissional, finalista dos prêmios Esso e Embratel e mestrando do Curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG)]