Desde que foi preso pela Polícia Federal, em 29/2, o cidadão Carlos Augusto Ramos, vulgo “Carlinhos Cachoeira”, converteu-se em assíduo personagem dos noticiários. Com a instalação da chamada “CPI do Cachoeira”, em 19/4, a imprensa passou a tratar do caso quase diariamente – ver, por exemplo, as matérias “Cachoeira fica calado e CPI antecipa fim de sessão”, publicada no Estado de S. Paulo, em 22/5; “Cachoeira plantou notícias na revista Época”, publicada na CartaCapital, em 25/5; “As perguntas que Perillo precisa responder na CPI”, publicada na Veja, em 12/6; e “Investigação da CPI do Cachoeira para com férias do Congresso”, publicada na Folha de S.Paulo, em 15/7.
Por que o empresário goiano foi preso? A justificativa imediata teria sido o seu envolvimento com atividades ilícitas, notadamente a exploração de jogos de azar (por exemplo, jogos eletrônicos e o tradicional jogo do bicho). De acordo com a legislação brasileira, explorar jogos de azar é privilégio do Estado, como acontece no caso da Loteria Federal, da Loteria Esportiva e da Mega-Sena. Vale registrar que embora também seja um jogo de azar, o jogo do bicho ainda é classificado como contravenção – ver, por exemplo, Decreto-Lei nº 9.215, de 30/4/1946.
Sorteios tendenciosos
Em sentido amplo, diz-se que um evento é um jogo de azar quando as regras que o caracterizam definem quem é o vencedor – e, por conseguinte, o(s) perdedor(es) – com base em critérios que não dependem apenas de atributos (físicos ou mentais) dos próprios jogadores. Às vezes, o vencedor é escolhido por algum processo inteiramente aleatório, como é o caso dos sorteios. A Loteria Esportiva é vista como um jogo de azar, embora não seja um sorteio; a Loteria Federal e a Mega-Sena são, ao mesmo tempo, jogos de azar e sorteios. Estabelecido que um jogo de azar é um sorteio, resta saber se o sorteio é honesto ou tendencioso.
É possível examinar os jogos de azar de diferentes pontos de vista (histórico, sociológico, criminológico etc.) – ver, neste Observatório, o artigo “Proibição de bingos tem cobertura fria”. O interesse aqui é chamar a atenção para algumas questões matemáticas que estão por trás de jogos de azar do tipo sorteio, como é o caso da Mega-Sena. Questões desse tipo, embora tenham implicações práticas óbvias, não costumam ser discutidas na grande imprensa. O motivo, ao que tudo indica, é dos mais triviais: em muitas redações, a matemática segue sendo vista como um assunto “maldito”, que assusta e afugenta leitores. Os editores, portanto, tendem a ignorá-la, com exceção talvez dos cadernos de economia, onde respingos de matemática financeira tendem a ser vistos como manifestações de rigor e precisão, conferindo àquelas páginas uma suposta aura de respeitabilidade.
Cabe desde já observar o seguinte: nem tudo o que aparece na mídia sob o rótulo de “sorteio” merece de fato tal denominação. Ao contrário daquilo que os próprios promotores alardeiam, certos eventos não estão devidamente fundamentados em processos de amostragem aleatória, não merecendo, portanto, a denominação de sorteio. Em ocasião anterior (Costa 2003), exemplifiquei um caso assim, rotulando o evento de “pseudossorteio”. Como tento argumentar mais adiante, sorteios tendenciosos ludibriam os participantes e, nesse sentido, deveriam ser coibidos.
Eventos incertos
Termos como “chance”, “probabilidade”, “erro”, “sorteio” e “incerteza” fazem parte do vocabulário diário daqueles estudiosos que lidam com uma área da matemática comumente referida como teoria das probabilidades (Murteira 1979). Alguns dos pioneiros nessa área, como os franceses Blaise Pascal (1623-1662) e Pierre de Fermat (1601-1665), estavam interessados justamente em predizer os resultados de certos jogos de azar, envolvendo cartas e dados, praticados pelos nobres franceses daquela época.
A probabilidade de um evento incerto – por exemplo, qual das seis faces de um dado cairá voltada para cima? – é uma medida numérica que nos diz quão provável é que o evento venha a ocorrer. Uma baixa probabilidade significa que a chance de ocorrência é reduzida. Em linhas gerais, a probabilidade de que um evento ocorra é uma função de sua frequência: a chance de retirar uma bola verde de uma urna contendo apenas bolas amarelas é zero; mas esse valor cresce à medida que a proporção de bolas verdes aumenta. Diz-se então que a probabilidade de determinado evento é igual à frequência observada desse evento dividida pelo número total de eventos possíveis.
Imagine uma urna contendo 200 bolas, 40 das quais são verdes. Qual seria então a probabilidade de retirarmos uma bola verde ao acaso (isto é, dando chances iguais a todas as bolas presentes na urna)? Para responder a esta pergunta, precisamos calcular a probabilidade de retirar uma bola verde – em símbolos, P (bola verde) –, o que pode ser feito com a seguinte equação:
P (bola verde) = bolas verdes / quantidade total de bolas,
= 40 / 200,
= 0,2,
o que corresponde a 20%, ou uma chance de sucesso a cada cinco tentativas.
Eventos incertos que variam de modo aleatório podem ser descritos por equações matemáticas na forma de funções probabilísticas. Isso significa dizer que, embora não saibamos qual será exatamente o próximo resultado, podemos estimar as probabilidades das diversas alternativas possíveis.
Sorteio ou pseudossorteio?
Amostras são subconjuntos de uma população de elementos (reais ou abstratos). Tomamos amostras quando não podemos (ou não queremos) examinar toda a população. Diz-se que uma amostragem é aleatória quando a amostra produzida é uma representação fiel da distribuição de eventos tal qual eles ocorrem na natureza. Em termos formais: uma amostra aleatória de tamanho N, de uma variável aleatória X, corresponde a N mensurações repetidas de X, feitas sob condições essencialmente inalteradas (Meyer 1977). Em muitos casos, porém, essa noção ideal não é plenamente satisfeita pelas condições experimentais reais.
Sorteio é um tipo de amostragem. No âmbito deste artigo, importa ressaltar que as probabilidades dos vários resultados possíveis em um sorteio – seja jogando um dado para o alto ou retirando bolas de dentro de uma urna – são iguais entre si e assim permanecem até o fim do processo. Quando tais condições não são plenamente satisfeitas, deixamos de ter um sorteio e passamos a ter um pseudossorteio. Trata-se, em poucas palavras, de um sorteio tendencioso ou desonesto (no sentido probabilístico, não necessariamente no sentido moral).
Um exemplo familiar de pseudossorteio são aquelas promoções na TV durante as quais o apresentador retira a carta premiada do meio de inúmeras cartas amontoadas no chão ou socadas dentro de uma urna. Em ambos os casos, o que temos é um pseudossorteio, pois as probabilidades de retirada são tendenciosas (por exemplo, em favor das cartas que estão mais próximas do apresentador), e não aleatórias, como deveriam ser caso o processo fosse mesmo um sorteio. A origem do problema, nos exemplos citados, tem a ver com o uso de uma “máquina de sorteio” inadequada – a falta de espaço físico, tanto no caso das cartas amontoadas no chão como no das cartas socadas dentro da urna, impede que haja uma livre movimentação, o que dificulta que a carta premiada seja escolhida de modo aleatório.
Os promotores de tais eventos estão (deliberadamente ou não) ludibriando o público. Embora eles próprios possam ser ingênuos (do ponto de vista da teoria das probabilidades), as autoridades públicas deveriam estar preparadas para detectar a ocorrência de pseudossorteios, a exemplo do que já fazem hoje no caso dos famigerados caça-níqueis (ver, por exemplo, matéria “Polícia apreende 29 máquinas caça-níqueis na zona leste de SP”, publicada na Folha de S. Paulo, em 19/11/2011), máquinas programadas de modo deliberadamente tendencioso e contra as quais o “apostador” não tem chance real de vitória.
O caso da Mega-Sena
Não aposto em jogos de azar, mas muitos brasileiros apostam e a Mega-Sena aparentemente é um jogo de azar honesto – isto é, o processo que aponta os números vencedores seria de fato aleatório. Na versão brasileira, até onde sei, vence o apostador que acertar seis números entre sessenta possíveis (1 a 60). Pode parecer fácil, mas não é. Na verdade, dependendo do número de apostas, as chances maiores são de que não haja qualquer vencedor. Não é de estranhar, portanto, que o prêmio acumule com tanta frequência – ver, por exemplo, matéria “Mega-Sena sorteia hoje prêmio de R$ 11 milhões”, publicada na Folha de S.Paulo, em 21/7/2012.
Dadas as condições do jogo, a probabilidade de alguém acertar uma primeira dezena qualquer – P (dezena inicial) – seria igual a:
P (dezena inicial) = 1 / 60.
Como se trata de um sorteio com remoção (isto é, o número sorteado em uma rodada é excluído das rodadas seguintes), a probabilidade de alguém acertar duas determinadas dezenas consecutivas é igual a (1/60) x (1/59); a de acertar três dezenas é igual a (1/60) x (1/59) x (1/58), e assim por diante. Desse modo, a probabilidade de alguém acertar uma determinada sequência de seis dezenas pode ser calculada como o resultado da seguinte multiplicação:
P (seis dezenas) = (1/60) x (1/59) x (1/58) x (1/57) x (1/56) x (1/55),
= 1 / (60 x 59 x 58 x 57 x 56 x 55),
= 1 / 36.045.979.200.
Esse resultado ilustra como é ínfima a probabilidade (uma única chance em pouco mais de 36 bilhões de alternativas) de que alguém consiga acertar uma sequência de seis números retirados por sorteio de um universo contendo um total de 60 números possíveis.
Ocorre que na Mega-Sena brasileira a ordem dos números sorteados não tem qualquer importância. Quer dizer, para que um cartão com os números {1, 10, 15, 20, 30, 60} ganhe o prêmio, não importa se o {1} é sorteado antes ou depois do {10}. Não faz diferença, portanto, se a ordem de sorteio é {1, 10, 15, 20, 30, 60}, {20, 15, 1, 60, 10, 30} ou {60, 20, 30, 1, 15, 10} – em todos esses três casos, um mesmo cartão seria o vencedor. Para ganhar na Mega-Sena, o que importa é a identidade dos números sorteados, não a ordem em que eles são sorteados.
Seis elementos distintos – por exemplo, os números {1}, {10}, {15}, {20}, {30} e {60} – podem ser arranjados de 720 modos diferentes – {1, 10, 15, 20, 30, 60}, {1, 10, 15, 20, 60, 30}, {1, 10, 15, 60, 20, 30} etc. No caso da Mega-Sena, isso implica dizer que cada cartão com seis números tem 720 chances de ganhar – cada chance corresponde a uma ordem específica – em meio a um universo de 36.045.979.200 alternativas diferentes.
É loucura apostar?
A probabilidade de alguém ganhar na Mega-Sena – P (Mega-Sena) – pode então ser calculada como o resultado da seguinte equação:
P (Mega-Sena) = P (seis dezenas) / 720,
= 36.045.979.200 / 720,
= 50.063.860.
Para quem se lembra da matemática do ensino médio, cabe registrar que há um modo mais direto de chegar a esse mesmo resultado. A questão que estamos tentando responder – qual a probabilidade de que um cartão da Mega-Sena com seis números seja o sorteado? – equivale a escolher uma única combinação em meio a todas as combinações possíveis de 60 elementos tomados seis a seis. Assim, escrevemos:
C60,6 = 60! / 6! x (60-6)!,
onde o termo C60,6 (= 60C6) representa a combinação de sessenta elementos tomados seis a seis; e o símbolo “!” indica fatorial. O fatorial de um número natural qualquer, n, é o resultado de uma sequência multiplicativa cujo primeiro termo é n e o último é 1; temos assim que n! (lê-se fatorial de ene) = n x (n – 1) x (n – 2) x (…) x 1.
Desenvolvendo os termos da igualdade acima, fazemos
C60,6 = (60 x 59 x 58 x 57 x 56 x 55 x 54!) / (6! x 54!),
desde que 54! / 54! = 1, podemos simplificar; assim, obtemos
= (60 x 59 x 58 x 57 x 56 x 55 x 54!) / (6! x 54!),
= (60 x 59 x 58 x 57 x 56 x 55) / (6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1),
= 36.045.979.200 / 720 = 50.063.860.
Como se vê, chegamos ao mesmo resultado de antes. Ambos nos dizem a mesma coisa: a probabilidade de alguém ganhar na Mega-Sena equivale a uma única chance em meio a pouco mais de 50 milhões de alternativas. É, convenhamos, uma probabilidade muita pequena. Tão pequena que deveria nos fazer pensar: mesmo admitindo que a Mega-Sena seja um sorteio honesto, por que alguém arriscaria dinheiro, tempo e preocupação em um jogo desses?
Referências citadas
Costa, F. A. P. L. 2003. Sorteio ou pseudossorteio? La Insignia, edição de 8/1/2003. Disponível aqui (acesso em 29/7/2012).
Meyer, P. 1977. Probabilidade: aplicações à estatística. RJ, LTC.
Murteira, B. J. F. 1979. Probabilidades e estatística, 2 vols. Lisboa, McGraw-Hill.
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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)]