Eu, como milhões ou bilhões, gostei muito da abertura dos Jogos Olímpicos de Londres. Mas concordo com a ideia de que o Brasil pode – e deve – fazer melhor. Por duas razões. A primeira e mais difícil é um desafio a qualquer festa para multidões hoje em dia: é que no show, embora belíssimo, faltou cultura. Ele foi espetacular, em todos os sentidos da palavra; gerou prazer para o público; mostrou o melhor do esporte; apresentou uma Grã-Bretanha multiétnica e multicultural – e, ainda, apostou no que considera ser o foco da juventude atual, dos celulares às baladas de sábado à noite. Mas podia ter feito mais.
O espetáculo começou com Shakespeare, o maior autor da cultura inglesa. O ator Kenneth Branagh declamou uma passagem de “A tempestade”, após quatro corais infantis representarem, cada um, uma das nações que formam o Reino Unido – Irlanda do Norte, Gales, Escócia e Inglaterra. Aliás, não só os corais mostravam a união do Reino, como todos contavam com negros e minorias étnicas, nem britânicas nem mesmo europeias. Mas, depois disso, a cultura sumiu. Ou melhor, a cultura que prevaleceu, de longe, foi a de massas. Não houve cultura genuinamente popular, erudita ou folclore. A Grã-Bretanha que nos foi mostrada foi, na hipótese mais generosa, a que começa com Mary Quant – para quem não sabe, a criadora da minissaia, a mulher que colocou Londres no centro do mundo jovem, na década de 1960 – e os Beatles.
Por que acho isso uma falha? Porque a abertura dos Jogos Olímpicos é uma enorme oportunidade para um país apresentar o melhor de sua cultura e mostrar que perspectivas ela abre para o mundo. Ele pode dizer como contribui para a paz e o enriquecimento da sociedade global. Sabendo disso, os britânicos apostaram em tudo o que aponta para uma humanidade solidária nas suas diferenças. Mas deixaram de lado um grande trunfo, que são vários séculos de excelente cultura. Na verdade, a falha que aponto é recorrente em nossos dias. O triunfo da indústria cultural é tão avassalador que até quem vive da palavra, como vários jornalistas e professores, sente vergonha dela, procurando substituí-la por cenas não-verbais da vida contemporânea. Daí que um dos episódios centrais do espetáculo tenha sido o dos jovens de hoje, que mostra todos os signos de consumo vinculados à Internet e à vida veloz.
Mas por que teríamos de escolher entre a cultura, digamos, “culta” e a cultura de massas? Não daria para ter ambas? Uma das grandes ênfases dos últimos anos esteve na comunicação multimídia. Mas multimídia inclui não só os novos meios de comunicação, como também os que têm milhares de anos, como o livro, as artes plásticas, a música. Todos eles se modificam ao longo dos tempos, e mudaram bastante graças à informática, porém permanecem ricos.
Pergunta importante
O Brasil poderá fazer melhor? Depende do empenho que coloque nisso. A lição de casa é, essencialmente: o que um país pode mostrar, de sua cultura, que seja uma contribuição importante para o mundo dos próximos anos? Um ponto é evidente, no caso de nosso País: a capacidade de integrar grupos distintos, sobretudo de nacionalidades, etnias e culturas diferentes. Não devemos vender a ninguém a duvidosa “democracia racial” e é preciso confessar nossas falhas neste campo. Mas lembremos que aqui os filhos de imigrantes, já na primeira geração, conversam entre si em português e não na língua dos pais. Isso é raro no mundo. Além disso, no Brasil é impossível distinguir pelo telefone a cor de uma pessoa, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos. Não apenas somos um país de imigrantes, como temos uma identidade brasileira mais frágil (ou flexível) do que pretendem algumas outras – e hoje essa flexibilidade (ou fragilidade) é um trunfo para as relações humanas.
A segunda razão é o carnaval. Difícil, uma festa popular melhor que ele. Vi em 1989, na praça da Concorde, a celebração dos 200 anos da Revolução Francesa. Feia não foi. Mas a festa de Jean-Paul Goude foi um carnaval fracassado. Unir as melhores escolas de samba do país num megadesfile é algo que só o Brasil pode fazer. Mas o importante é que não seja apenas um pot-pourri. Será bom, caso se fale de Guimarães Rosa, João Cabral, Niemeyer e Glauber, que não tenhamos apenas bonecos deles em carros alegóricos e citações deles no samba-enredo. Será ótimo se a maior festa, que é uma imagem “for export” (mas também real) do país, permitir uma fecundação recíproca da cultura popular e erudita. Será fantástico se a criação da festa mobilizar nos próximos anos criadores e estudiosos da cultura, mas, sobretudo, as camadas populares. Não que vivamos em festa. Não que sejamos todos alegres. Mas, como ideal, a alegria é a prova dos nove, como dizia Oswald de Andrade. Quem sabe, para citá-lo de novo, fazer da festa a ocasião da massa comer o biscoito fino da cultura.
Temos as belezas naturais. Mas um dia Machado de Assis recebeu um visitante estrangeiro. Depois de lhe mostrar o Rio de Janeiro, ouviu-o dizer: o melhor mesmo é a beleza natural. Machado se entristeceu: o que nós fizemos não vale nada, se comparado com a natureza, que já recebemos pronta? Pois é aí que entra a cultura. Mostrar o que os brasileiros fizeram, e não apenas o que o Brasil é, pode ser bom. Discutir isso pode ser muito bom, nos anos que nos faltam. Devemos, também, ir além do país do carnaval. Por exemplo, Clarice Lispector é uma referência óbvia para a questão feminina. Os jogos podem ser a ocasião de nos perguntarmos o que temos para repassar ao mundo. Essa pergunta é uma das mais importantes que podemos nos colocar a respeito de nós mesmos.
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[Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo]