Onde ele vai, atrai caravanas de fãs. Flashes e autógrafos já fazem parte de sua rotina. Não estamos falando de uma celebridade da TV ou do cinema, mas do bioquímico norte-americano Bruce Alberts, da Universidade da Califórnia, que proferiu palestra na segunda-feira (30/7) na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na ocasião, alunos e professores lotaram um dos maiores auditórios da universidade e formaram fila extensa para tirar fotos e pedir dedicatórias no livro didático Biologia molecular da célula, escrito pelo cientista e amplamente adotado nos cursos da área.
Além de conhecido por seu trabalho de educação científica e pesquisas sobre duplicação de DNA, Alberts é o atual editor-chefe da revista Science, uma das mais influentes publicações científicas do mundo. Nessa entrevista concedida à CH On-line, focamos esse aspecto da atuação do cientista, que fala sobre os conflitos e desafios do sistema tradicional de publicação científica e deixa escapar sua vontade de tornar livre o acesso de países em desenvolvimento a sua publicação.
Compartilhar a informação censurada
Recentemente, o senhor participou de uma discussão global para decidir se publicava ou não um artigo submetido à Science que relatava a criação de uma forma mais transmissível do vírus da gripe aviária. Como costuma lidar com impasses como este, onde é preciso escolher entre a universalização do conhecimento e a segurança pública?
Bruce Alberts – Esse é um grande problema que surgiu logo após o 11 de setembro porque todos estavam preocupados com um segundo ataque. Naquela época, algumas pessoas do departamento de segurança dos Estados Unidos começaram a pressionar cientistas e periódicos a não publicar muitas coisas. Resistimos e seguimos publicando porque pensávamos que eles estavam exagerando. Por outro lado, tenho que concordar que, às vezes, algumas coisas não devem ser publicadas. Montamos um comitê na Academia Nacional de Ciências, composto por cientistas e pessoas que entendem de segurança para ver se, juntos, poderiam chegar a um acordo sobre esses casos. Em 2003, publicamos relatórios, disponíveis no site da NAS, que diziam basicamente duas coisas: que há situações em que não devemos publicar certos detalhes dos artigos, mas que, muitas vezes, as informações que poderiam ser úteis aos terroristas também seriam úteis a nós, para ajudar a resolver questões da ciência e até curar doenças.
Outra coisa importante é que criamos uma instância nos Estados Unidos justamente para julgar esses casos, o Painel Científico Consultivo para Biossegurança dos Estados Unidos (NSABB, na sigla em inglês), também formado por cientistas e pessoas que entendem de segurança. O caso do vírus da gripe aviária foi a primeira vez na Science em que fomos orientados a publicar somente as conclusões de um artigo e não os detalhes. O problema é que a gripe aviária se espalhou pelo mundo todo e esse tipo de informação é importante para os cientistas que estão tentando desenvolver vacinas contra a doença.
Então eu e o editor da Nature, que recebeu um artigo semelhante, decidimos que só deixaríamos os detalhes perigosos de fora, como o governo queria, se eles criassem um mecanismo que tornasse possível compartilhar a informação censurada com os especialistas para os quais eram particularmente importantes. O governo não criou tal mecanismo e, ao mesmo tempo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) avaliou que era importante publicar tudo imediatamente. Felizmente, o governo reviu sua posição. Caso contrário, teríamos ficado num beco sem saída. Espero que esse caso sirva de lição para que os governos e a OMS encontrem um mecanismo para que, da próxima vez, a gente possa compartilhar parte das informações só com as pessoas que precisam delas.
Por falar em controle de informação, quando a Science decide que vai “retirar” um artigo? Vocês adotam critérios fixos ou a decisão varia de acordo com cada caso?
B.A. – O normal é que os próprios autores peçam a retirada do artigo quando percebem que houve contaminação ou erros de procedimentos. Isso acontece e temos muitos casos em que os autores admitem que cometeram erros. Existem ainda as situações mais problemáticas como as fraudes e a manipulação de resultados. Em todos os casos esperamos que os autores concordem com a retirada do artigo. O problema é que, às vezes, um artigo é assinado por vários pesquisadores e nem todos aceitam. Nesses casos, sou eu quem toma a decisão.
Isso aconteceu recentemente quando vocês retiraram um artigo que ligava a fadiga crônica a um vírus. No entanto, o polêmico artigo sobre uma bactéria que supostamente substituía fosfato por arsênio em seu DNA, que se comprovou errado por meio de dois artigos publicados também na Science, não foi retirado. Por quê?
B.A. – Era ao caso da fadiga crônica que eu me referia quando disse que eu mesmo tomei a decisão, pois era evidente que o trabalho estava errado e ficou claro que houve contaminação das amostras e erros de interpretação das informações. Mas o caso da bactéria foi totalmente diferente. Não havia nada de errado com os experimentos originais e os autores não viram razão para retirar o artigo. Discutimos bastante o assunto. Foi uma pesquisa bem complexa feita por doze pessoas e que trouxe evidências indiretas de que a bactéria tinha o arsênio como base do DNA. O fato é que a conclusão do artigo estava errada como mostraram outros artigos em que foram usadas tecnologias melhores, mas a informação contida no artigo não é falsa.
Mas o estudo original da bactéria arsênica se mostrou errado justamente porque houve contaminação das amostras, assim como o caso da fatiga crônica e outros em que os artigos foram retirados…
B.A. – Sim, mas a contaminação estava descrita no artigo, os pesquisadores admitiram que ela existia, só que pensaram que não interferia nos resultados. Os autores agiram de forma correta e deixaram as cepas das bactérias usadas na pesquisa disponíveis para outros testarem. Para mim, essa questão está acabada, é assim que a ciência funciona.
Quando o senhor assumiu o cargo de editor-chefe da Science, disse que iria dar especial atenção à questão da revisão por pares, que serve justamente para evitar erros como este. De lá para cá o que mudou nesse processo e o que o senhor acha que ainda pode ser melhorado?
B.A. – A revisão precisa mesmo ser melhorada, ainda não chegamos lá. Mas uma coisa que mudamos foi que agora todos os autores têm que preencher uma ficha dizendo qual foi sua contribuição no trabalho. Isso porque algumas vezes as pessoas assinavam artigos sem nem saber. Vi casos em que um artigo tinha 10 autores e no final das contas só três pessoas tinham feito o trabalho. Depois, se a gente descobre que um artigo como esse tem algum problema, como uso de informação falsa, os autores dizem que não têm responsabilidade porque não são os reais autores. Em alguns países isso é uma tradição. Queremos desencorajar falsos autores porque não é justo com os autores reais. Acontecia muito de poucos estudantes fazerem todo o trabalho e colocarem o nome de vários professores mais velhos, de modo que quem realmente fez o trabalho não ganhava o crédito merecido.
O mundo científico tem assistido à chamada primavera acadêmica, um movimento de pesquisadores insatisfeitos com o sistema tradicional de publicação, em que os periódicos cobram altas taxas dos autores e pelo acesso ao conteúdo, mas não pagam aos revisores. Esses cientistas têm defendido taxas menores e acesso gratuito ao conteúdo. Como avalia essa tendência?
B.A. – Essa é uma discussão mais do governo europeu, principalmente do Reino Unido. Eles discutem o que chamamos de modelo dourado, em que o acesso aos artigos é gratuito para todos, mas como alguém tem que pagar, o custo fica com o autor que tem seu trabalho publicado. É assim na PLoS One e funciona muito bem. Mas não seria possível fazer isso nos periódicos grandes como a Science. Não olhamos apenas se o artigo está correto, selecionamos o que é realmente relevante. Recebemos e revisamos 20 vezes mais artigos do que publicamos, o que exige um trabalho de edição muito demorado e caro.
A tendência de publicações abertas parece forte. Como o senhor vê o futuro da Science, acredita que ela poderia adotar algum modelo de acesso aberto?
B.A. – Quando eu era presidente da NAS, pensávamos em um modelo chamado de verde, que tornaria todos os artigos abertos e gratuitos seis meses depois da publicação nos países desenvolvidos e de forma imediata nos países em desenvolvimento. Esse modelo funcionaria para periódicos de peso como Science e Nature porque as bibliotecas dos Estados Unidos, Europa e Japão não iriam esperar esse tempo. Elas pagariam pelo acesso e isso iria cobrir as despesas de publicação. Infelizmente, na Science não tenho controle sobre isso; sou responsável pela publicação, mas não pelo acesso, que envolve dinheiro e é uma decisão da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS, na sigla em inglês). Mas eu faço pressão.
O senhor já disse que vai deixar a Scienceno ano que vem, após seis anos no cargo de editor. Na sua experiente opinião, qual será o maior desafio dos periódicos tradicionais daqui para frente?
B.A. – O verdadeiro desafio é que o campo da ciência está explodindo e nós publicamos o mesmo número de artigos toda semana. Fica cada vez mais difícil decidir o que publicar. No nosso caso, a decisão é ainda mais complicada, pois contemplamos várias áreas e queremos escolher artigos que interessem a muita gente e não só a especialistas. Acredito que os periódicos generalistas como Science e Nature são muito importantes. Os cientistas precisam saber mais sobre outros campos para serem mais criativos em sua ciência.
Mesmo sendo um periódico generalista, a linguagem da Scienceé bem especializada. O senhor acha que qualquer um pode lê-la?
B.A. – Sou um crente na ciência. A Science é um dos veículos, mas é claro que podemos fazer mais. Temos um projeto novo chamado “Science in the Classroom” [ciência na sala de aula, em tradução livre] que vai ser lançado em breve. A nossa ideia é publicar um artigo por mês na Science para professores e alunos. Queremos que os estudantes de ensino médio leiam artigos científicos, pelo menos esses que terão linguagem menos técnica. O primeiro que preparamos é sobre a morte de morcegos nos Estados Unidos por causa de um fungo. Muitos americanos não sabem como a ciência funciona; ela é vista como algo fascinante apenas por um pequeno grupo de pessoas e a maioria não acredita na ciência. Temos uma publicação que a NAS lança a cada dez anos chamada Ciência, Evolução e Criacionismo. Na última edição, perguntamos a pessoas com educação superior o que pensavam sobre ciência e evolução. O resultado foi que os americanos pensam que a ciência é o que os cientistas acreditam, religião é o que os padres acreditam e que você pode escolher que visão adotar. Isso nos mostra que temos falhado na educação da ciência, pois temos ensinado a ciência como dogma.
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[Sofia Moutinho do Ciência Hoje On-line]