Recebi da Revista de História da Biblioteca Nacional um convite, no início de fevereiro de 2012, para participar do projeto “dossiê sobre o golpe civil-militar de 1964”, com um artigo sobre a imprensa e o golpe. O convite, portanto, foi feito antes da crise da revista divulgada amplamente pela imprensa que culminou na demissão, em março, do editor-chefe e posteriormente na demissão coletiva do Conselho Editorial.
Voltei-me para a confecção do artigo tomando como foco a imprensa carioca estudada no meu livro intitulado A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (EDUFF/NITPRESS, 2010). No final de fevereiro entreguei o artigo intitulado “A Rede da Democracia: a imprensa carioca no golpe de 1964”. O artigo foi entregue depois de ajustes solicitados para enquadrá-lo no padrão editorial da revista. Em março, recebi um e-mail da revista para informar que “por decisão do nosso Conselho Editorial, o dossiê sobre o Golpe de 64 não será publicado nesta edição de abril. Ainda não há uma data confirmada para a publicação do dossiê, mas quando houver entrarei em contato imediatamente para avisá-lo”. Este foi o último comunicado que recebi da revista.
Quem acompanhou pela imprensa a polêmica em torno da revista sabe que a última informação sobre o caso foi dada pelo jornalista Elio Gaspari, cuja coluna no jornal O Globo de 29 de julho foi intitulada “O Dossiê Golpe de 1964 saiu da gaveta”.
Propaganda anticomunista
A revista foi lançada esta semana e publicou cinco importantes artigos que abordam a participação de atores da sociedade e do Estado no golpe, em especial um artigo sobre a atuação dos jornais paulistanos. E dedicou um simples e pequeno box à atuação dos jornais do Rio de Janeiro, sem nenhuma menção para a mais forte evidência de articulação entre importantes representantes da imprensa carioca para pedir a intervenção militar no governo Goulart.
Refiro-me à Rede da Democracia idealizada por JoãoCalmon, deputado do Partido Social Democrático (PSD) e vice-presidente dos Diários Associados, a maior organização na área das comunicações de massa, reunindo jornais, revistas, rádios e emissoras de televisão. Criada no Rio de Janeiro em outubro de 1963, a Rede da Democracia eraum programa radiofônico comandado pelas rádios cariocas Tupi, Globo e Jornal do Brasil. Ia ao ar quase todos os dias e repercutia pelo país através de outras centenas de emissoras afiliadas. Os pronunciamentos difundidos pelas emissoras eram posteriormente publicados nos respectivos jornais: O Globo,Jornaldo Brasile, sobretudo, O Jornal. Criado logo após o presidente solicitar ao Congresso o estado de sítio e denunciar que estava em andamento uma conspiração golpista, esse amplo sistema de comunicação nacional deu voz aos representantes políticos, militares, empresários, jornalistas, professores, intelectuais, sindicalistas e estudantes, possibilitando a articulação no campo discursivo dessas emissoras e jornais do Rio de Janeiro com partidos e grupos de oposição ao governo, principalmente com a União Democrática Nacional (UDN), o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), que financiava as campanhas eleitorais dos candidatos anticomunistas.
Um dos temas mais divulgados pela Rede da Democracia, que revela registros de intensa atividade até meados de março de 1964, foi o da reforma agrária, compreendida em diversos pronunciamentos como um pretexto para se alterar a Constituição e o direito de propriedade, considerado a base do regime representativo. A grande maioria dos pronunciamentos veiculados pela Rede da Democracia associou o projeto de reforma agrária do governo à ameaça comunista. A Rede da Democracia não adquiriu um caráter de debate ou de confronto de opiniões para o esclarecimento da opinião pública. A missão de informar o público foi substituída pela propaganda política anticomunista.
Atuação omitida
Podemos avaliar a importância da Rede da Democracia através de alguns atores que se pronunciaram pela cadeia de rádios e tiveram seus discursos publicados nos jornais: Ruy Gomes de Almeida, Bilac Pinto, João Calmon, Mem de Sá, Armando Falcão, Virgílio Távora, Nascimento Brito, Roberto Marinho, Daniel Krieger, Milton Campos, Fillinto Müller, Pedro Aleixo, Ildo Meneghetti, Raimundo Padilha, Júlio de Mesquita, Austregésilo de Athayde, Aureliano Chaves, Eurico Gaspar Dutra, Amaury Kruel, Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias, Josué Montelo, João Mendes, Magalhães Pinto, Pery Constant Bevilacqua, Herbert Levy, Daniel Krieger, Sandra Cavalcanti, Raul Brunini, Aliomar Baleeiro, Plínio Salgado, entre outros.
As informações sobre a existência da Rede da Democracia, portanto, deveriam estar presentes na revista, que tem uma tiragem de 120 mil exemplares. Além de suas edições serem vendidas em bancas de jornal e livrarias de todo o país mensalmente, seguem para bibliotecas de escolas públicas brasileiras (graças a um convênio com o MEC) com o objetivo de auxiliar, informar e atualizar professores e estudantes. Certamente, nesse capítulo do golpe de 1964, os estudantes e professores deixarão de conhecer uma nova visão ampla e fundamentada da atuação da imprensa carioca.
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[Aloysio Castelo de Carvalho é professor da Faculdade de Economia e do programa de Pós-graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense]