A notícia de que o Senado, no início de agosto, havia contrariado decisão do Supremo Tribunal Federal e ressuscitado a obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício profissional levou a uma nova série de artigos, alguns publicados neste Observatório, que retomam o debate sobre a validade de tal exigência.
Trata-se de debate antigo, que no Brasil ganhou força nos anos 1980, na esteira do decreto-lei de 1979 que regulamentava a profissão. Na época – ainda muito marcada pela polarização ideológica que a vida sob ditadura ajudava a alimentar –, a defesa do diploma tinha um certo sentido de contestação ao papel desempenhado pelas empresas de comunicação: formado adequadamente num curso universitário, o jovem candidato a repórter aprenderia a olhar o mundo de maneira crítica e teria a qualificação necessária para confrontar a orientação prevalecente nas grandes redações. Daí, logicamente, a pressão das empresas contra esse tipo de formação.
Não é preciso dizer o quanto havia de idealismo nessa perspectiva, que entretanto reforçava a aura libertária e a própria mitologia historicamente associada à figura do jornalista, cristalizada no conceito de “quarto poder”, forjado no período imediatamente posterior às revoluções que derrubaram o Absolutismo. A diferença de contexto deveria ser levada em conta: no mundo anterior à revolução industrial, o jornalista era um defensor e propagador de causas – por isso Thomas Jefferson podia dizer que preferia um país sem governo a um país sem jornais; hoje, é um profissional que, trabalhando em grandes corporações, cumpre rotinas muito estritas para a produção do noticiário.
Ainda assim, e ainda que idealizado, o conceito permanece até hoje e legitima os que exercem essa atividade como “fiscais do poder” e “representantes da sociedade”, incumbidos da missão de estar onde os demais cidadãos não podem estar para de lá extraírem e divulgarem as informações socialmente relevantes.
Argumentos falaciosos
Atualmente, a condenação à obrigatoriedade do diploma para jornalista se fundamenta principalmente no argumento de que tal exigência seria contrária ao princípio constitucional elementar da liberdade de expressão, além de representar uma forma de corporativismo e reserva de mercado, aliás incompatível e anacrônica num mundo em que a tecnologia digital teria aberto a “todos” a oportunidade de “comunicar”. Ao mesmo tempo, despreza-se a necessidade de formação específica: jornalismo seria algo que se aprenderia em dois meses (ver “Murdoquianas“), dois ou três dias e até mesmo em meia hora (ver “Cursar faculdade não prejudica“).
Em fins de 2011, escrevi um pequeno artigo (“Em defesa do diploma de jornalista“) no qual procurava desfazer alguns desses equívocos fundamentais, como a confusão entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa, e tentava demonstrar, como tantos fizeram antes, que o jornalismo é uma profissão, e uma profissão de tal relevância que exige qualificação superior.
Negar tal exigência é reduzir o jornalismo a um breve conjunto de técnicas já consolidadas que devem simplesmente ser incorporadas por quem desejar desempenhar essa função. Bastaria um rápido adestramento e qualquer pessoa razoavelmente inteligente e esperta, que tenha “algum talento para a escrita” e “razoável cultura geral”, pode virar jornalista – ainda que, como ressalta Mino Carta, o compromisso moral seja indispensável ao correto cumprimento da tarefa.
O desprezo pela teoria
Não é nada muito diferente do que disse Cláudio Abramo no conjunto de entrevistas condensadas no livro A regra do jogo, de 1988: “Para fazer jornal, há apenas algumas regras básicas: é necessário escrever na língua do país, de maneira compreensível, é preciso haver um horário para começar a trabalhar e para fechar a edição; o repórter não pode ser cego, o redator não pode ser paralítico das mãos”. O jornalista precisaria “ler muito, ler literatura, porque a literatura nos põe em contato com o universo comum dos homens”, deveria “ter uma formação cultural sólida” e “saber história, saber como funciona seu país, a máquina do país e as relações na sociedade”. A teoria ensinada nas escolas era descartável: “O que interessa Theodor Adorno e Walter Benjamin para o trabalho diário de jornal? Acontece que todo esse lixo alienou o jornalista, e as pessoas que deveriam estar sendo treinadas para um certo tipo de prática não estão mais, não sabem mais fazer as coisas”.
Ainda que se aceite a rejeição à perspectiva excessivamente teórica dos cursos de Comunicação de trinta anos atrás, inclusive pela carência de professores com um mínimo de experiência profissional, é improvável que um sujeito com tamanha bagagem cultural duvidasse da relevância de pensadores que ajudam a entender e questionar o mundo com o qual teremos de lidar. A não ser que a compreensão fosse – mas não era – a de que o jornalista precisava apenas de um bom adestramento.
A defesa da escola
Ainda assim, Abramo ressalvava, mesmo naquela época: “Sempre fui um dos primeiros críticos da escola de jornalismo, mas agora vejo tanta gente mobilizada contra ela que acabo desconfiando”. A suspeita, então, recaía sobre os grandes empresários do setor, interessados em gente mais dócil a seus comandos. Hoje, de quem deveríamos desconfiar?
Cláudio Abramo não considerava o jornalismo uma profissão, mas uma “ocupação”, uma “carreira”. Perseu Abramo, seu sobrinho, apenas seis anos mais novo, pensava exatamente o contrário. Em 1987, escreveu um pequeno artigo na Folha de S.Paulo (“Jornalismo: profissão específica ou atividade geral?“) fundamentando a necessidade de formação específica para o jornalista:
“Não é uma atividade geral, que qualquer um possa fazer. É um processo específico e complexo e que, por isso, exige formação especializada. A tendência histórica provável é que essa especialização aumente: cresce a complexidade tanto do mundo social e físico, que constitui o conteúdo das informações, quanto dos métodos de obtenção, registro e difusão das informações. Por isso modernamente o jornalismo necessita de formação especializada de nível superior; por isso é que surgiram, no interior dos sistemas escolares universitários, os cursos de jornalismo e seus diplomas.”
Ao mesmo tempo, Perseu desmontava o argumento da “reserva de mercado” identificado à necessidade do diploma específico, mostrando que o raciocínio estava invertido: “Não se trata de um ‘direito’ dos formandos. Trata-se do direito de a sociedade exigir do profissional a prova da sua formação regular, escolar e superior específica”.
Em seguida, discordava dos que sugeriam a hipótese de uma formação em outra área, ou mesmo uma especialização a partir de uma formação geral:
“Supor que outra formação não específica seja igual à de jornalismo significa negar o jornalismo como profissão específica e entendê-lo como atividade geral. Efetivamente, todos quantos concebam o jornalismo como atividade geral são coerentes ao negar a necessidade do diploma de jornalismo. Mas, para continuar coerentes, terão de assumir a premissa de seu corolário: se o jornalismo é uma atividade geral, não pode exigir como requisito prova nenhuma de qualquer formação prévia.”
A exigência de qualificação
Não é difícil perceber que os entusiastas da figura do “jornalista-cidadão”, forjada a partir das possibilidades abertas pela tecnologia digital, consideram o jornalismo exatamente como essa “atividade geral”, que qualquer um pode exercer, bastando para isso ter “algum jeito para a coisa”. A realidade, entretanto, é flagrantemente outra. De fato, o mundo se torna cada vez mais complexo, exatamente no sentido apontado por Perseu, que escreveu antes da disseminação da internet: tanto o mundo social e físico que produz as informações quanto os procedimentos para obtê-las – o que hoje exige habilidades multimídia impensáveis décadas atrás.
Não é algo que se aprenda em meia hora, dois ou três dias, ou mesmo dois meses. E não se trata, como jamais se tratou, simplesmente de adestramento técnico: trata-se de aliar essa qualificação à formação humanista que sempre se defendeu, para que o profissional habilitado ao manejo da técnica mais avançada saiba o que fazer com ela.
Mas é claro que tudo isso diz respeito ao jornalismo voltado para o esclarecimento do público, dedicado a duvidar das versões oficiais e empenhado em questionar as interpretações de senso comum sobre os fatos da vida cotidiana. Para o festival de superficialidades e bizarrices que circula como notícia, especialmente na internet, e para recortar e colar automaticamente releases de assessorias, meia hora de treinamento já seria uma eternidade.
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]