Em meio às tantas notícias penosas que nos traz o jornal de cada dia, duas particularmente tocantes seguiram-se em duas edições de O Globo (domingo e segunda-feira, 26 e 27/8). A primeira, contida numa matéria de Lúcia Leão sobre o recém acontecido ritual do Quarup, relatava que a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, recusou-se a receber uma carta assinada pelos líderes das 16 etnias do Parque do Xingu e endereçada à presidente Dilma Rousseff, com denúncias sobre o “grande golpe nos direitos indígenas” que está sendo maquinado em Brasília. Narra a jornalista:
“Para não receber a carta, a ministra se escondeu em uma oca e, no dia seguinte, justificou-se dizendo que o documento tratava de temas alheios à sua área, a da cultura”.
Preliminarmente, é preciso deixar claro que não contamos entre os membros da longa e fastidiosa campanha contra a ministra da Cultura. Ao que nos conste, é uma senhora gentil e bem-intencionada. Mas provavelmente muito mal assessorada, porque é simplesmente patético entocar-se numa oca sob a alegação de que a questão indígena é alheia ao Ministério da Cultura. Não é. A Secretaria da Diversidade Cultural, constante do organograma do MinC, desde o início do governo Lula e da gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira, tentou “afinar” uma política cultural relativa à diversidade ou à radical heterogeneidade simbólica brasileira.
Dizemos “afinar”, porque nos parece que algo como um “ministério da cultura” guarda semelhanças com a execução de uma peça musical num violino: diferentemente de outros instrumentos, no violino as notas não têm lugares marcados, têm de ser construídas pelo músico no instante em que toca.
Cooperação radical
O músico Gilberto Gil, com auxílios luxuosos, tentou extrair notas originais do ministério. Formular uma política cultural da diversidade já era, em si mesmo, um ato de cultura, talvez um dos mais importantes em muitos anos, uma vez que diversidade não é o reconhecimento folclórico de diferenças, mas uma afirmação múltipla, de cunho inequivocamente político e plural, que deveria repercutir junto à consciência atenta ao que se pode experimentar de realmente novo em nossa modernidade tardia.
Por que deveria repercutir? Primeiramente, porque nessa diversidade reside o que francês André Gorz chamava de “economia invisível”, uma economia não formalizável, sem a qual os sistemas econômicos não poderiam existir. Diz ele:
“Ela abrange todas as relações e realizações não computáveis e não remuneráveis, cuja motivação é a alegria espontânea na colaboração livre, no convívio e na doação livres. Dela resulta a capacidade de sentir, de amar, de se unir e de viver em paz com o próprio corpo, com a natureza e com o próximo”. (O Imaterial – conhecimento, valor e capital. Annablume, 2005).
Em segundo lugar, porque dessa diversidade, portanto, de diferentes comunidades de vida, partem outros jogos de linguagem, outras regras de enunciação das proposições necessárias a um novo consenso social. Isto implica dizer que não basta a pluralidade em si mesma, nem a mera crença em uma abstrata virtude do diálogo (uma suposta razão comunicativa), e sim que é fundamental reconhecer o diverso como a potência de uma cooperação radical entre as classes e as etnias. Ao invés da prática pasteurizada do “politicamente correto” para com as diferenças, é preciso achar o ponto de equilíbrio político das forças da diversidade.
Depredação ambiental
De fato, sob o influxo da globalização cultural, o reconhecimento da diversidade é, na prática, um pedido de palavra contra a violência frente ao Outro, característica hegemonia técnica e econômica. O respeito à liberdade do outro passa pelo reconhecimento – não apenas intelectual, mas principalmente sensível – de sua liberdade de se interrogar singular e diversamente sobre o seu próprio destino.
Miraculosamente, já existe uma intelectualidade orgânica dos indígenas capaz de formular, em termos racionais e claros, os seus problemas e, inclusive, de homenagear personalidades da sociedade global – a exemplo de Darcy Ribeiro, cuja memória foi evocada na cerimônia do Quarup.
Foi, assim, precisa e bela a resposta da índia Watatakalu, do Conselho de Mulheres yawalapitis, à ministra:
“A nossa cultura, a nossa tradição, a nossa vida é a nossa terra. Sem nossa terra e sem nossos rios, não vai existir nada do que ela [a ministra] está vendo aqui, não vai existir cultura nem vai existir índio”.
Watatakalu foi uma das articuladoras da manifestação – a primeira de natureza política durante o Quarup – contra a depredação ambiental e as pressões que partem dos vorazes interesses em Brasília.
Tronco de árvore
E a segunda notícia penosa?
O Globode segunda-feira (27) revela o teor de uma carta (esta certamente chegará às mãos da presidente da República) em que a própria ministra da Cultura denuncia o estado de sua pasta, segundo o jornal, “mergulhada em salários defasados, prédios deteriorados e riscos de dano ao patrimônio”. Dirigida a Miriam Belchior, ministra do Planejamento, a carta diz que “essa realidade do MinC e de suas entidades vinculadas (…) tem gerado danosas consequências ao governo e à sociedade”. Por outro lado, é enorme a taxa de evasão dos funcionários aprovados no último concurso público para o MinC. Insatisfeitos, aqueles que permanecem realizam manifestações de protesto e, nos folhetos que distribuem, falam da “possível extinção” do ministério.
Não é preciso dar muito trato à bola para se concluir que nenhuma culpa por nada disso deve recair sobre a ministra Ana de Hollanda – uma senhora gentil e cheia de boas intenções, reiteramos. Não recebeu uma carta, é verdade, mas mandou a sua, igualmente reveladora, embora de outro lado do problema.
A verdade, a penosa verdade é que a cultura – assim como, aliás, a educação – é coisa secundária no governo em curso. Economês é o dialeto falado no “andar de cima” (Elio Gaspari, data venia) brasiliense. Sobra capataz, falta espírito público modernizado. Assim não é possível afinar violino nenhum. Assim poderá fenecer esse belo projeto que foi o Ministério da Cultura, embora sempre reste a possibilidade de que, morrendo, venha a encarnar, como no Quarup, num tronco de árvore na Praça dos Três Poderes para se despedir e ser chorado por intelectuais e artistas.
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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]