Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia antipopulista e garantista

Os meios de comunicação são indispensáveis para a vitalidade do Estado democrático (e participativo) de direito. Sua atuação, no entanto, segue – muitas vezes – o viés populista. A mídia é condição necessária para a existência das liberdades bem como de outros valores nucleares do sistema republicano de governo. Só podemos pensar numa opinião pública vigorosa, atenta às atividades dos governantes, com uma mídia independente e vigilante (Monzón: 2005, p. 17). De qualquer modo, nada é absoluto no plano jurídico. A mídia também tem limites jurídicos, éticos, morais etc.

Não há dúvida que se pode subscrever a afirmação de que apenas alguns segmentos da mídia adotam os padrões do populismo penal, procurando construir a realidade criminal de forma a atender seus objetivos de interferir no desenho das políticas de reação (e prevenção) do delito ou (ilegitimamente) no desfecho judicial de algum caso concreto.

Vejamos o que afirmou um editorial do Correio Braziliense (23/5/12, p. 14): “A cidadania levou ontem (frente ao exercício do direito ao silêncio pelo acusado Cachoeira na CPI) um tapa no rosto e se descobriu impotente, abandonada”. A linguagem é terrorífica. Coloca toda população na posição de vítima. O exercício do direito constitucional ao silêncio constitui (para esse populismo midiático) uma grave “ofensa”, um “mal” que deve ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro. Coisa do diabo e não de Deus (consoante Maffesoli). Aliás, a proposta final do editorial foi a seguinte: “É hora de colocar uma vírgula no direito que garantiu o silêncio de Cachoeira: se o crime é contra o bem público, o acusado não pode se calar impunemente ante a autoridade. Elementar”. O que prega (é de verdadeira pregação fanática que se trata) é a extirpação, pura e simples, da garantia ao silêncio, que constitui cláusula pétrea no nosso sistema constitucional, reveladora de que evoluímos do sistema inquisitivo da Idade Média para um sistema constitucional dotado de razoabilidade. Do ponto de vista jurídico, aberração maior é impossível.

Discurso lucrativo

Todo criminoso merece cadeia, em julgamento sumário e sem respeito às garantias? Vejamos o que disse o editorial da Folha de S.Paulo de 1/9/12, p. A2: “A pena privativa de liberdade, como esta Folha tem assinalado várias vezes, só deveria ser aplicada nos casos em que o condenado traz real ameaça à segurança pública.” Analisando o caso mensalão, sublinhou: “Com todas as delongas de que se cercou, e com minúcias e divergências capazes de testar a paciência até dos próprios ministros, o julgamento do mensalão tem posto à prova esse duplo simplismo – tanto o de quem não se importa com a condenação quanto o dos que a querem a qualquer preço. Se há muito de exemplar nas decisões até aqui alcançadas, não são menores as lições que o processo pode trazer – no que assegura de respeito às garantias constitucionais, ao debate civilizado e ao exame de cada caso com rigor, mas sem tendenciosidade nem paixão.”

O Estado conta com mil maneiras racionais e válidas de provar os delitos organizados, inclusive dos poderosos econômicos, que não podem mesmo ficar impunes. Mas não podemos abandonar o velho e bom discurso formulado por Beccaria de que o Direito Penal constitui também garantia do réu contra os abusos do Estado. O populismo midiático e fanático se equivoca redondamente quando, para reivindicar mais eficiência na persecução penal, sugere o fim do Estado democrático de direito assim como o corte dos direitos e garantias constitucionais. Não se pode cobrir um corpo descobrindo outro, quando há cobertor para os dois. A proteção do Estado (punindo os criminosos) é tão fundamental quanto a proteção contra os abusos do Estado. O populismo penal midiático incorre no mesmo erro antes cometido por alguns criminólogos críticos que ignoravam a função protetiva (e civilizatória) dos direitos e das garantias. É preciso que o populismo penal midiático resolva, de uma vez por todas, seu dilema entre a barbárie e a civilização.

A problemática do delito não é algo alheio ou raro na vida da população brasileira (é muito difícil que alguém não tenha sido ou não tenha um conhecido que tenha tido uma experiência vitimizatória). Desde que a mídia se apoderou do rentável e lucrativo discurso criminológico o assunto nunca mais saiu da pauta do cotidiano das televisões, dos jornais, dos políticos etc. Minuto a minuto o tema, sendo recorrente, volta para os diálogos, telejornais, manchetes, projetos legislativos, leis novas etc. O sentimento de temor (medo) e de desproteção, pelo que dizem as pesquisas, aumenta a cada dia.

Nem a violência nem a criminalidade diminuíram

O inconsciente (ou imaginário) coletivo tem algumas convicções formadas sobre a matéria. A primeira, evidentemente, é a de que nenhum crime pode ficar sem castigo. O castigo seria imprescindível não só para “vingar” o que foi feito (fato ofensivo), senão também para evitar que o criminoso repita o seu ato. O medo da reincidência constitui uma das fontes do desejo da retribuição. A população, em geral, no entanto, em tempos de populismo punitivo, não postula apenas o castigo devido, sim, cada vez mais reivindica castigos mais duros, “mão dura” contra o crime, fim da impunidade, corte de direitos e garantias fundamentais, retrocessos à Idade Média etc. (uma coisa é o castigo, outra bem diferente é o que pretende o populismo punitivo).

Se perguntássemos para a população qual é o tratamento mais adequado para quem sofreu um aneurisma, claro que o cidadão comum diria: “não tenho a mínima ideia” Com certeza, ademais, nunca diria que um curandeiro seria a pessoa indicada para solucionar o problema citado. Sobre o mundo da medicina complexa o indivíduo comum não costuma opinar, por falta de conhecimento específico. Não é isso o que acontece, no entanto, no campo da criminalidade. Todo mundo, incluindo, portanto, os jornalistas, tem sempre uma receita (infalível) para a “cura” desse “mal”. Prisão, castigo duro, humilhação, degradação do preso, abolição das garantias penais, tortura, extermínio etc. Tudo que possa servir de instrumento de “vingança” vem à cabeça do cidadão comum (daí a demanda forte por pena de morte, prisão perpétua etc.).

Ocorre que essa “receita” não vem dando certo (sobretudo no Brasil). Somos o campeão mundial na taxa de encarceramento (de 1990 a 2011, 472% de aumento) mas, ao mesmo tempo, experimentamos um dos maiores incrementos nos índices de homicídio (9,6 mortes para cada 100 mil habitantes em 1979, contra 27,3, em 2011). Estamos prendendo muito (com frequência desnecessariamente), mas nem a violência nem a criminalidade diminuíram. Ao contrário!

***

[Luiz Flávio Gomes é jurista e professor]