A publicação de uma nova série de charges de Maomé pelo semanário Charlie Hebdo, de Paris, levou o governo da França a instruir o fechamento de embaixadas e escolas em 20 países muçulmanos amanhã, dia sagrado para o Islã. A ordem foi distribuída às representações por precauções de segurança e leva em conta os distúrbios antiamericanos da semana passada.
A ordem foi dada na manhã de ontem (19/9) pelo ministro das Relações Exteriores, Laurent Fabius, e engloba embaixadas, consulados e centros culturais. A redes de rádio, o chanceler afirmou não haver ameaça comprovada a nenhum estabelecimento, mas justificou sua decisão. “Preferimos nos antecipar. Adaptaremos as medidas de acordo com a evolução da situação”, disse. O governo francês teme que a onda de protestos atinja uma nova fase, desta vez anti-França.
No início da tarde, as representações da França em países como Indonésia e Tunísia – onde quatro pessoas morreram e uma escola foi incendiada nos protestos antiamericanos – fecharam suas portas ontem, obedecendo a recomendação da chancelaria para que adotassem precauções de segurança especiais. A decisão da França foi seguida de reforço da segurança das embaixadas de EUA e Espanha.
“Podemos caricaturar quem quer que seja”
A preocupação diplomática cresceu na noite de terça-feira (18/9), quando o semanário anunciou que publicaria uma série de 10 charges sobre a religião muçulmana, dentre as quais quatro que representavam Maomé – o que por si só é considerado uma blasfêmia pelos fiéis islâmicos. Na edição que veio às bancas ontem, em Paris, a revista trouxe uma ilustração de página inteira que parodia o filme francês Os Intocáveis – em cartaz no Brasil. O desenho mostra o profeta sentado em uma cadeira de rodas, sendo empurrado por um judeu ortodoxo, e afirmando: “Não dá para brincar.”
As páginas internas são mais ousadas e mostram uma representação de Maomé nu, de bruços, em poses que simulam revistas pornográficas. A edição vendeu os 75 mil exemplares postos em circulação ontem – vende 45 mil em média – e terá uma segunda tiragem hoje (20/9). Segundo funcionários de bancas de jornal de Paris e da periferia, muitas unidades foram compradas e destruídas imediatamente.
Charb, o cartunista que ilustrou a capa da revista e foi acusado por Fabius de “jogar lenha na fogueira”, amparou-se na lei francesa, que garante a livre expressão de opinião, para justificar sua decisão. “Eu vivo sob a lei francesa, não sob a lei corânica. Nós podemos caricaturar quem quer que seja na França, de Maomé a Marx”, disse.
“Estão procurando ter um mártir”
As reações à publicação foram intensas. Um explosivo caseiro foi detonado ontem ao lado de um mercado judaico na cidade de Sarcelles, na periferia da capital francesa. Duas queixas contra o semanário foram registradas por incitação ao ódio, injúria e difamação.
No meio político, governo e oposição defenderam o direito inalienável à liberdade de expressão, mas pediram responsabilidade aos jornalistas para evitar novos distúrbios. Alguns redatores já foram acusados de se aproveitar dos distúrbios e mortes no Oriente Médio, detonados pelo filme Inocência dos Muçulmanos, nos EUA, para se promover e aumentar suas vendas.
Na periferia de Paris, a reportagem conversou com muçulmanos. A maior parte disse que a comunidade se mostra indiferente à provocação. “Parece que estão procurando ter um mártir”, disse Ahmed M., um universitário de 23 anos. Para o cientista político Stéphane Lacroix, do Instituto de Estudos Políticos (Sciences-Po), o filme americano e as charges francesas têm naturezas distintas, mas as diferenças podem não ser entendidas.
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[Andrei Netto é correspondente do Estado de S.Pauloem Paris]