Há exatos quatro anos e cinco meses, estreei no Observatório da Imprensa com o texto “Como a mídia vê a titulação das terras das comunidades quilombolas“. Pinço um trecho…
“Este ano (2008), a Abolição da Escravatura completa 120 anos. Em 2009 será a vez de a República brasileira, também, comemorar seu 120º aniversário. Ironicamente, a História uniu um fato ao outro para que o país olhe para trás e saiba, exatamente, onde perdeu a chance de se redimir de um erro e se posicionar entre as democracias contemporâneas. Um ano e meio apenas separou o Brasil que é, do que poderia ter sido…”
… para lembrar como a história é irônica e cruel quando requenta e nos oferece um prato como se fosse novo.
Se, na época, o texto possuía teor de alerta e se baseava na sensibilidade social e urgência política com que três jornalistas notáveis – os baianos Luis Gama (1830-1882) e André Rebouças (1838-1898) e o fluminense José do Patrocínio (1854-1905) – tratavam da regulamentação fundiária, do saneamento e saúde como essenciais a um projeto de nação, hoje ele reaquece a memória a respeito do mesmo tema.
Há diferenças, lógico. Se antes jornalistas contavam-se nos dedos e opiniões guardavam-se em recortes, hoje as discussões alastram-se em escala virtual. Foi-se o tempo em que palpites eram dados por todos e as opiniões ficavam reservadas aos especialistas. Palpite e opinião são sinônimos. E é bom que sejam, para que os “formadores de opinião” palpitem mais; arrisquem-se, tenham rostos; caso contrário, o jornalismo de serviço, a pauta de eventos, vai continuar prevalecendo e fazendo escola nas faculdades.
Favela é cidade
Ilustro o parágrafo acima com uma falha primária (no jornalismo contemporâneo minimizam o erro chamando-o de “não priorização de pauta”) inaceitável, que faria com que o 20 de setembro fosse um marco na cobertura jornalística carioca. Nesse dia, era implantada na Rocinha a 28ª Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do estado, com a presença do governador Sérgio Cabral e comitiva, sob fogos, imprensa falada, escrita, televisada, chistes e retreta, enquanto, no mesmo dia e horário, no 20º andar do BNDES, lideranças das favelas da Rocinha, Cantagalo, Pavão-Pavãozinho, Borel e Manguinhos, mais representantes da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj), participavam do Fórum Nacional “Novos Caminhos do Desenvolvimento Brasil: Visão de País e Impulso à Competitividade para Avançar na Rota do Desenvolvimento e Viabilizar o Aproveitamento de Grandes Oportunidades” (ufa!).
A extensão do título justifica o conceito e vigor das discussões que buscam consenso e reconhecimento de que hoje o espaço da cidade é oportunidade; que favela é cidade; que o pilar do desenvolvimento do país está estruturado; fincado nas organizações de base (leiam-se favelas) e daí a necessidade de se pensar na regulamentação fundiária, saneamento e saúde e blablablá…
Cadeiras vazias
Na mesa em que o poder público era confrontado com as lideranças populares, em que gráficos e escalas perdiam em conteúdos e veracidades para as emoções comunitárias, falou-se de tudo: da juventude favelada, vista como produto; de aberrações e abusos, como safaris nas favelas; réveillon nas lajes; da especulação imobiliária que caminha de mãos dadas com as UPPS; do exemplo claro no Morro da Providência, posto na rota dos tratores do Projeto Porto Maravilha; do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da favela de Manguinhos, onde a expectativa de vida tem uma diferença de nove anos em relação às favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro.
O que se observou foi uma articulação poderosa; uma conspiração orquestrada pela urgência de quem reconhece que o tempo de reivindicação de direitos vem, progressivamente, sendo substituído pela discussão de direitos. Lamentável foi, mesmo estrategicamente posicionadas entre as partes que alimentavam os debates, as quatro cadeiras reservadas à imprensa estarem vazias. A imprensa estava lá na Rocinha e a notícia no salão nobre do BNDES. Lamentável ironia.
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[Délcio Teobaldo é jornalista, roteirista da TV Brasil]