A querela gerada pela difusão das caricaturas de Maomé publicadas pelo semanário satírico Charlie Hebdo se deslocou, na França, para o terreno jurídico e político. Duas associações muçulmanas recorreram à justiça contra o Charlie Hebdo, ao passo que a extrema direita francesa aproveitou o episódio para meter a colher de ódio em meio a um debate que, com o passar de dois dias, torna-se mais pesado. O semanário satírico francês publicou as caricaturas em meio a uma batalha que se armou no mundo por causa do filme anti-islã produzida nos Estados Unidos.
Na sexta-feira (21/9), dia da pregação muçulmana, os imãs das mesquitas suavizaram seus sermões a fim de dissuadir os fiéis de participarem, no sábado (22), das manifestações convocadas para protestar contra a difusão de caricaturas consideradas as blasfêmias. No entanto, o Estado francês tomou suas precauções. Além da mobilização geral das forças da ordem em nível nacional, a chancelaria anunciou que manteria todas as embaixadas fechadas no sábado e no domingo, além de escolas e centros culturais franceses, em 20 países onde há forte maioria muçulmana.
“A melhor maneira”
É neste contexto de radicalização das opiniões e de debate sobre a liberdade de expressão e o fanatismo religioso que a líder da ultradireita nacional, Marine Le Pen, trouxe sua contribuição com seus princípios antagônicos. Numa entrevista publicada no Le Monde, Marine Le Pen propôs “a proibição de todos os símbolos religiosos, inclusive a quipá judia e o véu islâmico, nos centros de negócios, transportes públicos e nas ruas” do país. A líder da extrema direita, que nada disse sobre os símbolos cristãos, recupera a revolta mundial gerada pelo filme contra o Islã em benefício de suas próprias ideias: Marine Le Pen tem feito da defesa das raízes cristãs da França um dos seus cavalos de batalha.
O presidente francês François Hollande respondeu de forma direta à proposta de Marine Le Pen. Hollande foi ontem para Drancy, uma localidade situada a uns 20 quilômetros de Paris, de onde mais de 60 mil judeus foram deportados para campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial. O chefe de estado inaugurou em Drancy o memorial do Holocausto e conclamou o país à unidade. Quando se referiu às declarações de Le Pen, Hollande disse: “Tudo o que separa, divide e fratura é errado (…). As únicas regras que conhecemos são as da República e da laicidade”.
Marine Le Pen envenenou um pouco mais o clima já delicado. Dirigentes da comunidade judaica rechaçaram a proposta da dirigente da extrema direita e o ministro francês da Educação, Vincent Peillon, acusou Marine Le Pen de ser “a número 1 dos fanáticos” e de querer tirar proveito da controvérsia com os muçulmanos. De imediato, duas organizações islâmicas da França, UOIF, próxima do pensamento da Irmandade Muçulmana e a Associação dos Muçulmanos da localidade de Meaux, se apressaram em acionar o semanário por “incitação ao ódio racional”.
Os políticos, os intelectuais e até as organizações muçulmanas estão divididas em torno de uma posição mais moderada. Assim, por exemplo, Mohammed Moussaoui, Presidente do Conselho francês do Culto Muçulmano, CFCM, apelou para que os fieis para que não fossem se manifestar neste sábado. No entanto, ele adiantou o que também está preparando uma interpelação contra o Charlie Hebdo, por “vontade deliberada de ofender” os muçulmanos. Com tudo, ímãs e líderes religiosos estão se esforçando para desativar a bomba relógio que o semanário francês lançou de novo na França. Said Abdillah, o imã da mesquita parisiense de Adda’Wa, disse aos fieis reunidos na sexta-feira que “a melhor maneira de responder aos imbecis é seguir o seu caminho para dizer, assim, ao outro: não existirás através de mim”.
Limites da responsabilidade
O Charlie Hebdo mantém contra o vento e contra a maré seu direito de publicar o que lhe der na telha. Stéphane Charbonier, diretor do semanário, alegou que a liberdade de expressão não pode ser compartilhada caso deixe de existir, ao ceder às tensões provocadas pelos extremistas. O semanário conta hoje tanto com detratores como com críticos. O líder das revoltas de maio de 68, Daniel Cohn-Bendit, qualificou os responsáveis pelo semanário de “colhudos”.
O semanário já esteve no passado implicado em vários escândalos semelhantes. Em 2007 e 2008 venceu as disputas judiciais consecutivas, de autoria, entre outros, da OUIF, União da Organizações Islâmicas da França. Estas organizações se opuseram, nos tribunais à publicação de várias caricaturas, mas a Corte de apelações considerou que os desenhos das caricaturas eram conformes à lei porque não estavam dirigidos contra o Islã, mas contra os fanáticos. Muitos jornalistas, intelectuais e políticos questionam se realmente valia à pena voltar a adotar o caminho da provocação num momento como este, e fazer dessa provocação um direito supremo da liberdade de expressão. Os limites da responsabilidade estão fixados quando, para defender a liberdade de expressão em Paris, põe em perigo a vida de milhares de pessoas no exterior.
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[Eduardo Febbro, da Agência Carta Maior, em Paris]