Os protestos que têm sacudido os países árabes nos últimos dias não são resultantes apenas da provocação partida de uma pessoa desqualificada, ou mesmo fruto do preconceito religioso contra o Islã. A questão é outra e mais profunda. Trata-se de consequência da opção desenfreada do mundo ocidental pelo fetiche proporcionado pela tecnologia e pela possibilidade do lucro cada vez mais multiplicador oriundo de tal escolha.
Inaugurado o mundo industrial, com a repetição avassaladora que as máquinas passaram a oferecer, não se pensou como essa opção coexistiria em sociedades que não privilegiam a ciência, mas os valores morais e/ou religiosos. Sabe-se que, em milênios de existência, parte da humanidade não enveredou por vias que diretamente compactuassem com a hegemônica, que é a da técnica.
As conquistas ocidentais, sobretudo as da área tecnológica, são frutos da liberdade. Intelectuais, técnicos e até mesmo burocratas não poderiam chegar ao nível de produtividade atingido caso não lhes fossem permitida a liberdade de pensamento, de pesquisa e de expressão. Acrescente-se também a concepção de que, pelo menos a princípio, privilegiar-se-ia a vida material, isto é, a concepção de existência cuja ética não mais levaria em consideração os valores metafísicos.
Tecnologia e liberdade de expressão
É certo que em muitos lugares, mesmo nos mais distantes e de cultura muitas vezes diversa, assimila-se o que foi produzido pelo Ocidente e, através de toda essa produção, consegue-se o sucesso almejado.
A partir dessa premissa, podemos pensar por dois flancos. O primeiro deles é que o mundo ocidental, capitaneado pelos Estados Unidos, sempre desejou estar à frente na ciência, não deixando de expandir por todo o globo os seus inventos, objetivando de imediato os consequentes lucros advindos deles. Não há país que não queira ganhar dinheiro, cobrar royalties por suas patentes, mas são poucas as vezes em que há o cuidado de se pensar se esses produtos farão bem ou mal a outros povos. Portanto, a partir do momento em que se possibilitou a disseminação do computador pessoal e, pouco tempo depois, da internet, não houve a preocupação com nenhum tipo de estudo sobre o impacto dessas tecnologias mundo afora, sobretudo em locais onde os valores não são semelhantes aos do Ocidente.
Por outro lado, os países islâmicos, que assimilam a técnica produzida fora de sua órbita e a adotam para o seu progresso, precisariam refletir a respeito da origem dessa nova ciência. Ao adotarem o computador pessoal e os sistemas operacionais oferecidos por americanos e europeus, estão compactuando, ainda que tacitamente, com as crenças dos vendedores. É muito fácil utilizar a tecnologia estrangeira que, até certo ponto, serve de resposta às necessidades locais, mas, ao mesmo tempo, esquecer que essa mesma tecnologia não existiria em condições adversas à liberdade de pensamento, de pesquisa e de expressão.
Dividam-se as responsabilidades
Daí é que se há de refletir sobre a responsabilidade de tantas mortes ocorridas depois da exibição no YouTube de parte do filme dirigido por esse “suspeito” senhor americano. Apesar de seus antecedentes, não se pode nem se deve jogar sobre seus ombros toda a culpa por tantas atrocidades cometidas nos protestos em defesa de uma determinada concepção religiosa. A responsabilidade deve recair também sobre aqueles que pensaram a economia em termos mundiais e não imaginaram que vender significasse não apenas lucros, mas também perdas, muitas vezes contabilizadas através de vidas humanas.
Parte da responsabilidade deve ser atribuída ao outro lado. Caso não desejem compartilhar os mesmos valores do mundo ocidental, como os de liberdade de expressão (e mesmo o da não existência de Deus), deveriam manter-se alheios às tecnologias.
É muito fácil ao Ocidente impor seus produtos à roda do mundo como fetiches e como uma das possibilidades de hegemonia. Ao mesmo tempo, também é fácil ao mundo islâmico usufruir dessa mesma tecnologia e até certo ponto lucrar com ela, mas não querer pagar o preço. Portanto, dividam-se as responsabilidades. O Ocidente com seu desenvolvimentismo desenfreado, e o Islã, caso queira privilegiar suas concepções religiosas e existenciais, que não se aproxime nem faça uso dos instrumentos que divulgam aquilo que chamam de blasfêmia.
Quem se utiliza dos dispositivos advindos de uma sociedade altamente tecnológica, que atropelou Deus e a metafísica, não pode exigir em contrapartida posições justificadoras.
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[Haron Gamal é professor de Literatura, Rio de Janeiro, RJ]