Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Só a prova do autor não basta

No último 7 de setembro, o escritor Philip Roth postou na revista The New Yorker uma carta aberta à Wikipedia. A enciclopédia digital se recusara a retirar uma informação a respeito de seu romance The Human Stain (A Marca Humana, na tradução da Companhia das Letras), e ele decidiu reiterar seu pedido publicamente.

Apresentando-se com maliciosa gentileza (“Dear Wikipedia. I am Philip Roth.”), o mais importante escritor americano vivo reafirmou que, diferentemente do que constava do verbete sobre o livro, o personagem Coleman Silk não fora inspirado no crítico literário Anatole Broyard (1920-1990), mas num velho amigo, Melvin Tumin, professor de sociologia da Universidade de Princeton, recebendo como resposta um respeitoso não, acompanhado de uma surpreendente explicação: a enciclopédia aceitava o argumento de que o autor é a maior autoridade sobre sua obra, mas exigia o aporte de alguma “fonte secundária”.

Em miúdos: para ser atendido, Roth teria de providenciar um documento cabal, consignado em algum impresso, atestando a procedência de seu reparo. Uma confissão por escrito (e publicada) de Melvin Tumin talvez satisfizesse a exigência, mas o sociólogo mestiço que, para livrar-se do preconceito racial no mundo acadêmico americano, também fingia ser branco e judeu, morreu há quase 20 anos.

Nenhum autor tem pleno controle de sua obra, cuja ressonância lhe escapa por completo, mas seu conhecimento sobre a origem de cada um de seus personagens é total e absoluto, logo, inquestionável – e portanto isento de subsídios testemunhais. Não na Wikipedia. Broyard foi uma hipótese ventilada por três ou quatro resenhistas nova-iorquinos e acolhida pela enciclopédia não por sua inquestionável plausibilidade, mas por ter sido avalizada pelo New York Times e outras fontes secundárias, com links para as indispensáveis notas de rodapé.

Mãos cruzadas

A carta de Roth é longa (2.655 palavras) e adquire a envergadura de um ensaio confessional sobre a gênese de A Marca Humana, a complicada relação de Tumin com sua negritude, a pouca ou nenhuma intimidade do escritor com Broyard, os conceitos de autoridade e autoria, e o modus operandi da Wikipedia, com suas regras pétreas de seleção e edição.

A lógica por trás da desculpa dada a Roth é surrealista, se não kafkiana. De qualquer modo, ele exagerou ao pedir que removessem a especulação da mídia sobre Broyard e Coleman Silk, em vez de solicitar que apenas a desmentissem. Afinal de contas, ainda que à revelia do escritor, a figura de Broyard passou a fazer parte da “biografia” do personagem.

Esclarecer a referência, no mundo real, do protagonista de A Marca Humana é, para efeito de fruição e avaliação do romance, uma démarche irrelevante. A reputação literária de Encontro Marcado em nada se alteraria se Fernando Sabino, pouco antes de morrer, tivesse revelado que os personagens Hugo e Mauro não haviam sido inspirados em Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, e sim em, digamos, Paulo Mendes Campos e Murilo Rubião.

A obsessão da Wikipedia com a neutralidade e a verificabilidade é meritória, mas às vezes beira o insano. Discussões bizantinas tomam-lhe um tempo precioso. Seus administradores alemães e poloneses gastaram dois anos discutindo como a cidade de Gdansk, na Polônia, deveria ser chamada, já que entre o século 14 e o fim da 2.ª Guerra Mundial ela se chamou Danzig. Àquela altura, os historiadores tradicionais já haviam encontrado a solução mais sensata: Gdansk antes de 1308 e depois de 1945, e Danzig entre 1308 e 1945.

Por ser um mutirão de anônimos e abnegados voluntários (80% do sexo masculino), é um milagre que a Wikipedia tenha logrado tamanho padrão de qualidade. Com cerca de 23 milhões de artigos em 285 línguas, acessada por 400 milhões de internautas, tornou-se, em 11 anos, o maior depósito de conhecimento da história da humanidade. E, graças à internet, a mais útil e rapidamente atualizada ferramenta de consulta. Seus antecessores analógicos eram umas carroças. Mas era o que tínhamos.

Fui criado com a maravilhosa Britannica, que consultava a três por dois, na mais devota confiança. Para mim, a Britannica não errava nunca. Se ela afirmasse que eu já havia morrido, enfiaria dois chumaços de algodão nas narinas e me deitaria imediatamente no chão, com as mãos cruzadas sobre o peito.

Final feliz

Apesar do empenho e da sapiência de suas dezenas de editores full time e milhares de fiéis colaboradores, a Britannica errou inúmeras vezes: datas de nascimento (Stalin, uma delas), citações, acidentes geográficos, fórmulas matemáticas, os nomes completos de Casanova e Bill Clinton, a identidade dos verdadeiros inventores da lâmina de barbear (dois irmãos alemães, 30 anos antes de King Camp Gillette registrar a patente da sua, em 1904). Correções, só na edição seguinte, que demorava não sei quantos anos para ficar pronta e ser posta à venda. Além do mais, ocupava muito espaço e custava uma baba. Não resistiu à era digital. Ao cabo de 242 anos de vida, sua versão impressa foi desativada.

Muitos wikpédicos criticam a perspectiva “demasiado ocidental e masculina” de suas pesquisas e já propuseram uma revisão em seu esquema de referências e abonações. Se a Wikipedia, argumentam, pretende ser a soma de todo o conhecimento humano, não deveria se fiar apenas em documentos impressos, apoiando-se também em vídeos, por exemplo. Há coisas (brinquedos de crianças africanas, bebidas regionais, etc.) ainda não verbetadas porque não existem delas uma só prova documental por escrito ou acessíveis pelo Google.

Ah, sim. O caso Roth teve um final feliz. A Wikipedia incorporou o reparo do escritor ao verbete de A Marca Humana.

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[Sérgio Augusto é jornalista]