Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Artigo diz que Bush menosprezou informações

“Deve o homem abster-se, sempre que for possível, de narrar coisas que, embora verdadeiras, pareçam falsas, porque quando o fato que se narra é incrível expõe a quem o narra ao vexame de passar, sem culpa, por mentiroso” (Dante Alighieri, Divina Comédia, Canto XVI/ Inferno).

Pela primeira vez, tenho de discordar de Dante. Pois “aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso” (Bertold Brecht).

O artigo de Kurt Eichnwald, publicado em 11 de setembro último no jornal The New York Times, traduzido e publicado no Estado de S.Paulo em 12 de setembro, intitulado“Menosprezo a dados possibilitou o 11/9”,enfatiza que o então presidente George W. Bush menosprezou o relatório que recebeu no dia 6 de agosto de 2001, o “Presidential Daily Brief” (PDB), cujo título era“Bin Laden está determinado a atacar os EUA”.

O artigo é uma publicação crítica um pouco tardia, por óbvio. Porém, é uma postura mais séria, se comparada à versão simplista que a grande mídia vinha apresentando até agora, ao alinhar-se, sem questionamento, à versão pouco convincente de George W. Bush quando afirmou, logo após o atentado de 11 de setembro de 2001: “Se eu soubesse que o inimigo ia usar aviões para matar naquela fatídica manhã, teria feito tudo em meu poder para proteger o povo americano”.

A responsabilidade por milhões de vidas

O PDB foi escrito por analistas da CIA – tutelados pela presunção de veracidade –, e alertava sobre o perigo iminente:“Os parágrafos conclusivos do PDB eram destinados a dizer ao presidente que a ameaça era atual (…) padrões de atividade suspeita neste país, consistentes com preparações para sequestros ou outros tipos de ataques” (Shenon, 2009:483).

Faltou clareza a Eichnwald com relação a quem respondera pela leitura presidencial do documento. O jornalista afirma que“funcionários da administração diminuíram a importância do documento, afirmando que, apesar do título de grande impacto, tudo não passava de uma avaliação da história da al Qaida, e não de um alerta a respeito do ataque iminente”. A pergunta é: Eichnwald, ao usar a palavra “funcionários”, referia-se à então assessora do presidente para assuntos de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, ou outros disseram o mesmo que ela? Sabe-se que a responsável por tal declaração, Rice, a fizera em 2004, perante a Comissão Bipartidária do Senado que investigou o atentado e, compromissada de dizer a verdade. Ela afirmou que eram apenas informações históricas e não iminentes, contrapondo-se aos autores do PDB. E por que o fizera? Se Rice admitisse que o presidente Bush tivera em mãos dados indicando a presença de terroristas da al Qaida ligados a Osama bin Laden em território americano, com a finalidade de causar destruição dentro de seu país, dados objetivos, configurar-se-ia a exigibilidade de conduta diversa.

Por ser o presidente, Bush, exercia a posição de garantidor, ou seja, sob sua responsabilidade estavam milhões de vidas. O cargo exigia dele o dever de cuidar e proteger o povo norte-americano.

Fatos que nunca chegaram a ser ligados

Além do PDB, Bush recebera umultimatum de Richard Clarke, chefe do CSG (Grupo de Segurança Antiterrorismo, formado pelos líderes de todas as organizações de segurança e antiterrorismo dos EUA). A preocupação de Clarke com a al Qaida de Osama bin Laden era tão grande que chegou a colocar o presidente Bush em xeque: “Uma semana antes de 11 de setembro, escrevi que a presidência tinha que se decidir se a al Qaida e sua rede eram apenas um incômodo para a grande superpotência ou se ela representava uma ameaça existencial; no caso da segunda alternativa, então teríamos de agir.” (Clarke, 2004: 324). Bush não agiu, menosprezou o alerta de Clarke.

Eichnwald deixou de citar a investigação do agente do FBI de Phoenix, Arizona, Kenneth Williams, especialista em antiterrorismo, que alertou, em 10 de julho de 2001, o Departamento Antiterror em Washington e o escritório do FBI de Nova York com uma mensagem específica:“O objetivo desta comunicação é alertar o Departamento e Nova York para a possibilidade de esforços coordenados de Osama bin Laden de enviar estudantes aos Estados Unidos para frequentar escolas de aviação civil. Phoenix tem observado um número irregular de indivíduos de interesse investigativo.” O memorando de Williams, menosprezado pelo Departamento Antiterror do FBI em Washington, muito provavelmente fora utilizado pela CIA para preparar o PDB, alertando sobre “padrões de atividade suspeita neste país, consistentes com preparações para sequestros ou outros tipos de ataques.”

A parte mais contundente dos fatos, ocorrida em agosto de 2001, em Minneapolis, foi mencionada por Eichnwald:“Zacarias Moussaoui, foi preso pela polícia da imigração, em Minnesota, depois de levantar suspeitas numa escola de pilotagem. Entretanto, esses fatos nunca chegaram a ser ligados e Washington não reagiu.”

Incongruência total

É importante acrescentarque, além da prisão pela polícia da imigração, Mossaoui fora interrogado também pelo FBI, pela chefe do escritório de Minneapolis, Coleen Rowley, e pelo agente especial antiterror Harry Samit. Os agentes do FBI entenderam que o suspeito seria capaz de lançar um avião no WTC, e confirmaram a ligação dele com a al Qaida de Osama bin Laden. A partir desta constatação, e na tentativa de impedir a tragédia iminente, buscando ajuda, “os chefes do FBI trabalharam de forma consistente e quase deliberada para frustrar os esforços dos agentes em Minneapolis” (Coleen Rowley, revista Time, 3 de junho de 2002). Samit concorda com Rowley sobre o bloqueio imposto a eles: “Samit said in his testimony that he had warned his superior more than 70 times that Mossaoui was a terrorist and accused them of `criminal negligence´ in impeding his efforts”(Washington Post, 22/3/2006).

O desespero dos agentes do FBI, que tentavam evitar a grande tragédia, fez com que as informações ligassem o FBI e a CIA, já que o Departamento Antiterror do FBI impedia ostensivamente os agentes de Minneapolis, em inexplicável intransigência e menosprezo. O esforço desesperado para ultrapassar as barreiras impostas pela sede central do FBI, a divisão de Minneapolis tomou a iniciativa de notificar diretamente a divisão de contraterrorismo da CIA (“The Bombshell Memo”, Time, 3/6/2002).

Intransigência e menosprezo repetiram-se inexplicavelmente, pois um mês antes houve bloqueio similar com o agente especial antiterror de Phoenix, Kenneth Williams. Por que no Departamento Antiterror houve bloqueio dos agentes, especialistas em antiterrorismo em Phoenix e Minneapolis? Aliás, houve promoções beneficiando justamente os responsáveis pelo impedimento, após a tragédia. A grande suspeita se baseia na total incongruência por parte de um departamento especializado em terrorismo ao menosprezar o esforço dos agentes de campo que anteviram o grande atentado que se aproximava.

Relatório foi censurado

Diante de tudo isso que vinha acontecendo nos EUA antes do atentado, fatos de que a presidência de George W. Bush tinha conhecimento, fica a pergunta que não quer calar por mais de uma década: por que não agiu diante de tantas evidências?

A constatação de o insuficiente cumprimento do dever legal, por parte de um presidente, sua inércia, em se tratando de ameaças de terrorismo, logicamente poderia ter como consequência uma tragédia! A negligência, proposital ou não, poderia ser causa relacionada diretamente com o evento. Não é admissível, sob nenhuma hipótese, a omissão de garantidor responsável pela Segurança Nacional. Logo, o quadro da responsabilidade subjetiva poderia estar configurado, não importando se por dolo direto, eventual, ou culpa consciente. De qualquer forma, um chefe do executivo que tenha previsto a ocorrência do resultado – omitindo-se, ao que tudo indica – estaria enquadrado no crime de responsabilidade. Até porque caso estivessem confirmados os pressupostos da responsabilidade subjetiva no nexo de causalidade – fato administrativo ligando o dolo ao dano – acarretar-se-ia a responsabilidade objetiva do Estado.

Qualquer semelhança pode não ser mera coincidência.

“Será que o ataque de 11 de setembro poderia ter sido impedido se a equipe de Bush reagisse a tempo aos alertas contidos em todos aqueles documentos diários? Jamais saberemos.”Esta afirmação de Eichnwald remete à declaração do senador Bob Graham, quando Bush censurou parte do relatório elaborado por uma comissão investigadora do Congresso, que o senador presidiu, sobre os fatos que antecederam o atentado de 11 de setembro. O Estadão, em 25 de julho de 2003, assim reportou:“O senador democrata Bob Graham disse à rede de TV CBS acreditar que algumas conclusões do relatório, que poderiam causar embaraço à administração de George W. Bush, foram retiradas do texto final.” A reportagem foi concluída com as palavras de Graham:“A parte mais significativa dos fatos foi censurada e, portanto, o povo americano nunca terá acesso a ela.”

A “aquisição de influência injustificada”

As afirmações pessimistas de Eichnwald e Graham alertam sobre uma prática inaceitável que usa o poder discricionário, em flagrante desvio de poder, para ocultar documentos comprometedores. Bush classificou todos esses milhões de documentos, tudo indica, para esconder algo que pode mudar todo o entendimento sobre os fatos que antecederam o atentado. Onze anos não diluem a lembrança de uma tragédia que horrorizou o mundo. A verdade continua escondida. Sua revelação poderá ter consequências inimagináveis. A provável leniência para que o atentado ocorresse ainda pode se evidenciar, não importa o tempo que se leve, e se isso ocorrer, a História será reescrita, e reescrita para melhor. A certeza da impunidade, a facilidade de classificar documentos comprometedores e a incrível distorção da mídia, blinda o crime de Estado. Mas, por quanto tempo? Por mais poderoso que seja o esquema de impedimento do acesso à verdade, este não suporta a força do tempo. Galileu Galilei dizia que“a verdade era filha do tempo, e não da autoridade”.

A suposta motivação político/corporativa alija o povo e perpetua o crime do governo contra seus cidadãos, o crime de lesa-humanidade. O Estado de Direito nos EUA, desde 1946, através doFederal Tort Claim Act,extinguiu a teoria da irresponsabilidade(the king can do no wrong). O chefe do executivo nos EUA não é um monarca, não tem autonomia para fazer o que quiser e tem que submeter-se ao império da lei, e não ao poder do complexo industrial-militar.A Constituição americana é clara em sua 14? emenda ao tutelar a igualdade de todos perante a lei.

“Quem desconhece a História está condenado a repeti-la” (Bertold Brecht). É imprescindível enaltecer o“recomeço da História” sem arrogância unilateral, sem guerras mentirosas e caríssimas, sem milhares de mortes. O sonho megalomaníaco de domínio global projetado para o novo século americano, imposto pelo complexo industrial-militar, e documentado pelos neocons, apodreceu. E para que algo parecido com o governo Bush nunca mais aconteça se faz necessária a constante apresentação do que são capazes. Que não esperem outro “evento catastrófico e catalisador – algo como um novo 11 de setembro”,assim como desejaram, para implantar o Rebuilding America’s Defenses, o“evento catastrófico e catalisador algo como um novo Pearl Harbor”.

Barack Obama tem conseguido limpar a imagem dos EUA e, internamente, luta para reestruturar as finanças de seu país – dilapidadas pelo seu antecessor – afinal, jogar no ralo U$ 3 trilhões, impondo o sacrifício de milhares de vidas por motivação mentirosa é inaceitável! Obama merece a reeleição. Ultimamente tem feito jus ao Prêmio Nobel da Paz que recebeu da humanidade como um voto de confiança. Resta saber se a “América Profunda” entendeu o recado de Dwight Eisenhower quanto à necessidade constante de enfrentar-se “a aquisição de influência injustificada, desejada ou não, pelo complexo industrial-militar”. E impedir pelo voto“a ascensão desastrosa de poder em posição inadequada”.

***

[Marcelo Csettkey é jornalista e escritor, Rio de Janeiro, RJ]