As explosões do mundo islâmico contra o filme e as caricaturas do profeta aguçam o seu conflito com o Ocidente, visto, hoje, como na iminência de uma guerra de religiões. Reptam o cerne da liberdade de expressão, mas a seu custo e à sua responsabilidade.
A presunção da vigência universal da cidadania leva a imaginar o seu acatamento pelas outras culturas, no seio da modernidade. Tal, porém, a esquecer o passado de envolvimento entre a Igreja e o Estado, a perdurar por milênios, de repúdio à blasfêmia e ao insulto à fé. A Inquisição no Ocidente manifestou este mesmo confronto, agora reforçado no Islã, pelos países da Sharia, e da religião de Estado.
Entramos no novo século, na expressão desses antagonismos, destampados de um inconsciente coletivo, cuja violência se demonstrou no 11 de Setembro. A al-Qaeda é a sua manifestação contínua e organizada, como se evidenciou, ainda agora, um ano após a morte de Bin Laden.
É a purga de um confronto cultural, a despontar depois de seu imperialismo ocidental dos últimos séculos, e na afirmação lograda e temporã dos povos submetidos à sua hegemonia.
Novo milênio
As agressões midiáticas nos Estados Unidos, ou na França, ao Islã de agora entrincheiram-se neste assumir-se limite, e a todo o risco, nestes dias da liberdade de expressão. Mas é não se dar conta do verdadeiro gatilho indeterminado que têm as caricaturas de Maomé, de disparo, a esmo e de forma incontrolável, sobre o inconsciente coletivo islâmico, num convite direto às atuais manifestações desenfreadas de revide. Mais se agrava, ainda, o quadro, quando se veem revistas alemãs, como a “Titanic”, assumirem o conflito na Alemanha, e a sequência do “Charlie Hebdo”, em Paris. Embalde, como agora ocorre no Paquistão, os governos tentaram criar um estuário controlado de dissenso, por força de suas alianças com os EUA.
Da mesma forma, os regimes ocidentais entendem que a defesa da expressão passa, hoje, da responsabilidade individual a uma inevitável regulação coletiva, justamente diante deste inconsciente social sublevado, e da literal emergência de um conflito cultural.
É o que evidencia a violência contra qualquer símbolo americano nas ruas islâmicas, nas lojas de sanduíches do McDonald's, ou por venda da Coca-Cola. A preservação da ordem pública – como garantia do bem comum – força, também, a de sua apreciação concreta no cotidiano a, obrigatoriamente, penalizar o teor deliberadamente provocador das caricaturas do profeta.
A França, a Alemanha e os EUA ainda hesitam, mas é difícil imaginar-se, sem estas restrições, qualquer torna a um desarme entre o Ocidente e o mundo muçulmano.
Não fazê-lo é manter, ainda, uma visão equivocada do universalismo ocidental, num novo milênio que se abre com o reconhecimento do multiculturalismo, sob pena de entrarmos num disparo imprevisível da “guerra de religiões”.
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[Candido Mendes é integrante do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações]