Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A semiótica do negão

Um dia antes da eleição do presidente dos EUA, uma negra norte-americana explicava em primeira página de jornal por que não votaria em Barack Obama: “Não vejo o mundo pela ótica da cor”. Coerente com a democracia das razões, pouco se lhe dá que o mundo a veja por essa ótica, que ela rejeita. O fato é que a cor escura não se furta às retinas de um mundo regido pelo paradigma ocidentalista da branquitude, o paradigma leucocrático. Em termos estritamente linguísticos, a resposta da cidadã negra está politicamente correta. Esticando ao limite o seu princípio, ela poderia ter-se arrogado ao direito de não ser sequer identificada como “não-caucasiana”.

 Parece que a bandeira do “politicamente correto”, hasteada (nos anos 1960) pela esquerda norte-americana, contemplava especialmente as minorias étnicas. Incapaz de alterar o poder, a esquerda se consolou com o discurso. Desde então, individuo negro não podia mais ser chamado de “negro”, muito menos de “nigger”, que sempre foi de fato muito pejorativo. “Black” era consensual e “black is beautiful”, um estandarte afirmativo.

Uma vez chegada ao Brasil, a bandeira virou bandeirola geral para sacramentar as ações de danos morais – uma moda jurídica de mais de duas décadas. Não é questão de verdade ou de mentira, mas de “dosimetria” do sabão na língua. É preciso muita cautela com o que se nomeia ou se diz – que o digam os jornalistas, cada vez mais cerceados por moralistas, patrões e juízes.

“Lindo!”

Só que a bandeirola tem seus anversos ou suas ambiguidades. Assim é que um termo antes considerado ofensivo pode retornar aos costumes com a cumplicidade do afeto. “Negão” é um bom exemplo: antes, uma palavra pesada; hoje, leve, carinhosa mesmo. O aumentativo apenas assinala a impossibilidade da dúvida fenotípica: o cara é mesmo descendente de africano.

E de repente, não mais que de repente, fora das canchas de futebol, fora dos ringues de vale-tudo, fora dos terreiros de samba, um negão – assim o povo a ele se refere – ocupa a cena do mérito público. Nome: Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal.

Pela primeira vez na História do Brasil, um homem negro vai assumir a presidência do STF, depois de uma atuação notável como relator do histórico processo do “mensalão”. É também a primeira vez que um negro é aplaudido nas ruas do Rio, não por mérito artístico ou atlético, mas por brio.

Se quiséssemos traduzir este mesmo substantivo para alguém como, digamos, Barack Obama, teríamos que usar dignity, em inglês. Brio, porém, conota muito mais, como garbo e zelo. A palavra tem a ver com a existência na medida em que é perpassada pela compostura e pela retidão do agir. Não se mede brio por conhecimento nem por pose, mas pela impressão de dignidade existencial. Por isso, é algo que se sente, mais do que se sabe.

Como transpira dos jornais de cada dia, apesar de seu atual e democrático voo de cruzeiro, o Estado Nacional é sujeito a doenças, como todo corpo. Pode-se pensar, por exemplo, em “anemia” diante do poder das corporações e das finanças. Há várias outras. Mas saúde total é uma quimera – médica ou ético-política. É imperativo, portanto, resguardar as partes boas, prezando o bem da vida, embora sem deixar de observar as eventuais fraturas expostas, os riscos de gangrena. A imprensa costuma deixar-se levar pela síndrome do mal, porque está culturalmente antenada para o negativo do fato social, para aquilo que o poder não gostaria de ver publicado, ou seja, a notícia tal como a tradição jornalística a entende.

Mas até frente aos absurdos aparelhos de Estado, é possível sentir, sem mesmo saber ao certo, que em determinadas partes do corpo público ainda há carne para sustentar o esqueleto da Nação. Não que a imprensa deixe de ter os seus afetos perceptivos, mas o povo, essa massa amorfa e “catinguda” (expressão de Monteiro Lobato a propósito da gente negra) não é a “massa falida” dos comerciantes, e sim a matéria de que se alimenta o espírito cívico. Vale recordar que povo não é população, mas princípio político da aglutinação democrática.

Parte desse tipo de massa eram as pessoas que se aglomeravam na praia carioca, no início de novembro, e, vendo caminhar o negão na calçada, saudavam-no com gritos de “sou seu fã” e, mesmo, “lindo!” Tudo isso tem aparecido em colunas diárias, a imprensa tem-se mostrado atenta a essas demonstrações.

Epifania do brio

É viável a hipótese de que a cidadania média, alheia ao intrincado funcionamento das instituições e cada vez mais desnorteada pela realidade incorpórea da televisão e da internet, rejubile-se com a corporificação da justiça numa imagem única. Tudo o que quer o negão é fazer cumprir a lei, diz-se. Mas esse tipo de entusiasmo provavelmente excede a designação da pessoa física de Joaquim Barbosa, para recair na semiose do ministro.

Por mais que um “comunicologismo” possa atrapalhar a clareza de uma exposição, aqui vale a pena insistir. Semiose é um processo de significação social, que o indivíduo engendra em certas circunstâncias, de modo consciente ou não. A imagem midiática que o público tem do ministro é a principal responsável pelo processamento de uma significação que, como um rio, desemboca na cultura. Semiótica é a visão teórica desse processo.

Ninguém é dono de sua própria imagem, apesar das litanias jurídicas. Queira ele próprio ou não, o ministro é um “lugar” na comunicação pública, ou seja, é uma imagem localizada que se desloca e interage, gerando sentido novo. O indivíduo corresponde integralmente à sua imagem? Não se sabe e, no fundo, importa pouco, ao menos provisoriamente. No tribunal, de pé, com a toga negra assentada sobre os ombros e os braços apoiados na cadeira solene, o ministro parece incorporar a serenidade simbólica da justiça.

 No imaginário coletivo, é precisamente o contrário de outra imagem reproduzida várias décadas atrás por jornais e pelo cinema. Em Duque de Caxias, então um polo de violência na Baixa Fluminense, um político ostentava uma capa preta sobre os ombros – no cinema, O Homem da Capa Preta–– mas a justiça, a “sua” justiça, se escrevia com as balas de uma metralhadora conhecida como “Lurdinha”.

Agora, a justiça está imaginariamente encarnada num corpo com hérnia de disco, que o impede de ficar muito tempo sentado. As charges jornalísticas podem figurá-lo duelando fisicamente com um ou outro, mas isso é tão só figura de retórica, já que a sua arma é apenas simbólica. A palavra, alguém diria.

Mas, no fundo, que palavra? Ninguém entende muito bem aquele palavreado jurídico, bombástico, repetitivo, cheio de tecnicalidades e, não raramente, hesitante. A televisão expôs ao público algo que o velamento de antes não deixava ver: a hesitação técnica e valorativa dos magistrados supremos. Apesar da suposta evidência dos autos, tudo depende muito do momento e do estado de espírito de cada um. A “ciência” do direito é mais subjetiva que a do jornalismo.

Donde, então, a repercussão pública desse magistrado em particular? Possivelmente de algo que irrompeu, um tanto aleatoriamente, de sua semiose midiática e que foi recebido na casa de cada leitor de jornal ou de cada telespectador como a epifania miraculosa do brio. Isso pode acontecer em meio à mais absoluta superficialidade das notícias ou do bestialógico das redes sociais.

Mito do cotidiano

De repente, repetimos, não mais que de repente, o negão ­­– síntese provisória da simpatia de personagens de Avenida Brasil, Lado a lado, Subúrbia, das repercussões positivas das ações afirmativas e da aura mundial do negão Obama – se impôs nas retinas e nas consciências como a imagem sinóptica de algo sadio além do podre, de algo “lindo” fora dos padrões estéticos da publicidade, de algo mais justo que o formalismo processualista dos profissionais do Judiciário, finalmente de algo com cara de povo.

Barack Obama reelegeu-se presidente da República num país que já teve o seu apartheid e em que a votação se dá por colégio eleitoral porque historicamente se tratava de impedir a contagem unitária e direta dos votos de negros então libertos. Joaquim Barbosa chegou ao Supremo Tribunal Federal de um país que detesta saber do seu apartheid light (basta ler a imprensa nossa de cada dia…) e no âmbito de uma vicissitude social e histórica análoga àquela suposição de que o besouro não deveria poder voar com todas as desvantagens biológicas que exibe – mas voa. Não se trata, assim, dos homens em si mesmos, mas de sua semiose social.

Pouco importa, reiteramos, que o ministro aceite a carapuça ou se reconheça nesse lugar que, bem visto, é um mito do cotidiano. Nada disso invalida a semiótica: entre Obama e o ministro, há um oceano, mas há também a ponte simbólica entre um negão e outro.

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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]