Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“A imprensa reflete o racismo no Brasil por inteiro”

Muniz Sodré é negro, baiano, fala russo, alemão, iorubá e francês, é faixa-preta em caratê e jiu-jítsu. Mas não foi por isso que um dia, quando trabalhava na revista Manchete, agrediu fisicamente Adolpho Bloch – coisa que muito jornalista já teve vontade de fazer. Sodré completou 70 anos em 2012, no dia 12 de janeiro, e entre os vários eventos que lhe prestam homenagem, um leva o nome de um grande amigo.

O Prêmio de Jornalismo Abdias Nascimento – organizado pela Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio), ligada ao Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio – vai homenagear este professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ. Na noite de segunda-feira (12/11), em meio à entrega dos prêmios aos jornalistas vencedores, Sodré será chamado ao palco. Ele vai ouvir algumas palavras, por sua militância contra a discriminação racial e contribuição à diversidade cultural, e falar algumas outras.

Antes disso, o site do Sindicato dos Jornalistas foi até sua casa, no bairro carioca do Cosme Velho, para uma entrevista sobre imprensa, jornalismo de hoje, de ontem, racismo e preconceito. Confira a seguir.

Ao longo de 2012 o senhor recebeu várias homenagens pelos seus 70 anos. Como o senhor encara isso? A idade começou a chegar de fato?

Muniz Sodré – Ela chega. Com 70 anos você começa a perceber que o corpo não está mais o mesmo. Eu faço esporte violento (capoeira, caratê, jiu-jítsu), mas o corpo não reage da mesma maneira. Você sente que o esqueleto não aguenta mais. No caratê, que é um esporte de impacto, com o passar do tempo as pancadas vão ficando muito fortes. E o corpo não é mais o mesmo. Faço ioga também. Outro dia, pela manhã, estava com o corpo todo doído.

Sua ligação com jornalismo vem de onde?

M.S. – Eu sempre gostei de ler e escrever. Sempre fui meio CDF. Falo várias línguas. Fui tradutor, falo inglês, francês, alemão, italiano, espanhol, russo, árabe, iorubá (de origem africana, língua dos terreiros de candomblé), fui professor de latim. Era muito conhecido na Bahia por isso. Fui tradutor oficial da Prefeitura de Salvador. Quando você vai envelhecendo, o gosto por falar vai desaparecendo. Não falo bem como eu falava antes. Mas ainda dou conferência nestas línguas. O jornalismo vem desta coisa de escrever. Sempre fui profissional de jornalismo. Mas deixei a profissão em 1974, não estava mais interessado. Tinha um cargo na Bloch. Fui chefe de reportagem e redator da Manchete. Comandei a TVE em 1979 e 80. Meu último cargo público foi na Biblioteca Nacional, de 2005 a 2010. Nunca mais na vida quero cargo público.

Causa muito problema?

M.S. – É muito arriscado. Você dirigir orçamento público hoje é tão perigoso quanto entrar à noite da favela do Rato Molhado (Zona Norte do Rio), você não sai vivo. Pode entrar armado, vai sair sem arma e sem cabeça. Dirigir orçamento público é a mesma coisa. Existem duas instituições de controle contábil no País que acho que são as melhores do mundo: a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU). Todo mudo acha que no Brasil tem muito roubo. Tem roubo mas se sabe. É impossível roubar no serviço público sem que (os órgãos) saibam. Cada conta, cada despesa é controlada integralmente pela CGU, e no final do ano, pelo TCU.

Uma vírgula fora do lugar e…

M.S. – Está frito. Mas falam que é tanto roubo… Mas se sabe, só escapa quem tem força política. É um tipo de trabalho que é muito bom para ladrão. Se você é honesto, você pode se acusado por uma besteira e vai para o Diário Oficial da mesma forma que o ladrão. Enquanto que o ladrão está acostumado a isso e não vai para a cadeia. A primeira vez que estou vendo ir para a cadeia alguém deste tipo é nessa história do mensalão. Quem costuma ir para cadeia mesmo é preto e pobre, pp.

E qual a sua avaliação sobre a cobertura dos jornais atualmente, a exemplo da forma como foi noticiado o julgamento do mensalão?

M.S. – Hoje em dia o leitor se interessa muito pouco por assuntos sérios. O entretenimento e a diversão são o grande módulo do jornalismo. Isso é uma lástima. Um exemplo: o Segundo Caderno de O Globo. Os assuntos são música popular, TV, teatro, shows. Aí você tem colunistas que, se você prestar a atenção, todos estão ligados ao show business de um modo ou de outro – até quando são muito bons. Francisco Bosco, filho do João Bosco, é muito bom articulista. Mas o pai é músico, ele faz letra, é poeta… José Miguel Wisnik (também colunista em O Globo) é músico, professor. Caetano Veloso é Caetano. Hermano Vianna, irmão de Herbert Vianna. O show business, o entretenimento atravessam por inteiro o jornalismo. Tudo é diversão. E acho que isso contaminou o assunto mensalão. Para atrair leitores para este assunto, que é técnico, precisaram fazer uma novela do Supremo Tribunal Federal, o bem e o mal. O Lewandowski (Ricardo, ministro do STF, votou pela absolvição de réus do mensalão) foi votar (nas últimas eleições) e recebeu vaia porque ficou como vilão da novela. Já o Joaquim Barbosa (relator do caso) ficou de herói. Acompanhei o mensalão pelo Globo, pelos jornais, como uma novelização do julgamento.

A imprensa pode ter sido mais rigorosa por se tratar de um julgamento que envolve políticos do PT?

M.S. – Tem uma atração a mais. Se fosse o PSDB, e não tivesse no poder o PSDB, não teria a mesma atração. Sabe-se que houve mensalão do PSDB, o caso do FHC nas Ilhas Cayman, mas nunca tocaram nisso. É o mesmo tipo de escândalo se alguém vê e denuncia. O problema é que alguém sempre apita, quando apita é preciso saber se a imprensa está disposta a pegar isso.

Pelo que o senhor observa nos alunos de Jornalismo, qual é a expectativa deles com o futuro profissional, com o que vão encontrar?

M.S. – O jornalismo mudou. Ninguém que sai de lá (ECO) está desempregado. Estão nas redações? Não. O maior mercado é a assessoria de comunicação, depois a Internet. A comunicação hoje é um território onde a sociedade se desenvolve. As pessoas no fundo criam seus próprios empregos hoje. Claro, tem muitos que vão para jornal, para rádio, TV. As redações estão cheias de ex-alunos da ECO, da Fluminense, da PUC. Mas é um emprego de uma rotatividade muito grande, você passa pouco tempo nele. A profissão de deslocou da questão da entidade do jornalista.

O Prêmio Abdias Nascimento destaca trabalhos jornalísticos que estimulem a diversidade, que combatam a discriminação. No tipo de jornalismo feito hoje no Brasil há muito racismo?

M.S. – A esquerda não gosta de ouvir isso, mas o Brasil é um país muito racista. O racismo é um mal estar civilizatório. Conheço poucos lugares no Brasil onde não há racismo, as grandes casas de candomblé por exemplo. As instituições são racistas. Onde dou aula (Escola de Comunicação da UFRJ) você vai ver um único professor negro, eu. E mesmo assim, há quem ache que eu não sou negro, que sou negro pálido. Tinha um outro (professor negro) que foi transferido. Procure entre os alunos para ver se encontra algum que seja negro. É difícil. Se encontrar aluno negro, é de convênio, angolano, cabo-verdiano. Departamento de Física, de Matemática… vê se encontra negro! O mecanismo é excludente. Quando começaram as ações afirmativas, que foram as melhores coisas do governo Lula, aconteceu um novo tipo de inclusão social. Acho que isso foi uma das coisas mais importantes que ocorreram no Brasil neste século.

Por quê?

M.S. – Bem, este negro que está na universidade pode não melhorar de vida economicamente. Mas vai melhorar em autoestima e na posição dele na cidadania. Isso você já nota, sente a repercussão disso até na televisão. Antes tinha em novela um ou outro negro, e agora tem novelas inteiramente de negros.

É um reflexo das ações afirmativas?

M.S. – É um reflexo já. O problema do racismo é deixar se aproximar. Se uma filha entrar em casa de braço dado com um negão, o pai não vai gostar. Não é uma questão de ser racista, mas é o lugar que o negro ocupa na sociedade brasileira. “Minha filha vai casar com este cara, ele não vai ter emprego.” Você não pode satanizar o comportamento discriminatório sem mais nem menos. Tem que lutar contra ele, criar os mecanismos de aproximação. Portanto, sou a favor das cotas porque elas colorizam a paisagem colonizada. Recebo visita aqui de caras de 35 anos, negros, que trabalham com educação na periferia de São Paulo. Você olha para ele e pensa que ele trabalha com música. Nada! Tem mestrado nisso, doutorado naquilo…

Mas então a imprensa acaba refletindo este país racista?

M.S. – Reflete por inteiro. Os jornais, para usar expressão de Gramsci (Antonio, cientista político italiano), são intelectuais coletivos das classes dirigentes. Refletem este desejo de que as coisas fiquem como estão, cada macaco no seu galho. Quais foram os lugares de resistência às ações afirmativas? A imprensa. Aqui no Rio, O Globo. E com dirigentes, Ali Kamel. Nas universidades você encontra em alguns cursos resistência (às cotas). Mas no próprio O Globo tem gente que defende as ações afirmativas, o Elio Gaspari, por exemplo, Miriam Leitão, Ancelmo Gois. Mas as notícias, as pautas, tudo isso aí tem viés. O negro não está representado na pauta.

Como era sua relação com o jornalista Abdias Nascimento?

M.S. – Ele foi meu amigo. Meses antes de morrer (em maio de 2011) me chamou para almoçar na casa dele. Almoçamos ele, Elisa (esposa de Abdias) e eu. Foi uma tarde ótima. O Abdias Nascimento, em plena época dura do racismo, criou o Teatro Experimental do Negro (na década de 1940). Ninguém fala muito disso, falam de Nelson Rodrigues… Como professor, como homem público, senador, ele atuou dentro da paisagem racista brasileira.

Qual a sua opinião com relação à exigência do diploma de Jornalismo para exercer a profissão?

M.S. – Quando o Supremo acabou com a exigência do diploma (em 2009), o argumento era desconhecedor do que é jornalismo. Estes juízes são menos doutos do que você pode pensar. Eles não sabem o que é imprensa. O argumento de Gilmar Mendes, dizendo que jornalista é como um chefe de cozinha… não sei como ele fez esta ligação. Aliás, um chefe de cozinha ganha muito melhor que um jornalista. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. E, na França, para ser chefe de cozinha, tem que ter diploma. Já fui inteiramente a favor (da exigência do diploma), hoje eu hesito. Mas sou a favor ainda porque você não precisa de diploma para ser administrador de empresas, economista, advogado. Para quê? Só por uma garantia corporativa. Sou formado em Direito, a maior parte dos advogados é de analfabetos completos. Você precisa de diploma em profissões onde há risco de vida envolvido na profissão, como engenharia, medicina… No entanto, se é mantida a exigência do diploma para estes, porque não para o jornalista, dada a importância que a informação tem hoje na vida social? Ninguém aprende na faculdade aquilo o que está destinado na profissão. Ninguém se torna médico na faculdade de Medicina. Você se torna médico na residência, no hospital. Na faculdade, você aprende a aprender. Acho que o diploma dá uma garantia à profissão de jornalismo e permite uma luta mais equânime com os patrões por salários.

Liberdade de expressão e liberdade de imprensa são expressões muito utilizadas pelos empresários de comunicação, que têm seu expoente maior na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Estes dois termos estão desvirtuados hoje?

M.S. – A liberdade de imprensa foi abarcada pela mídia corporativa. É a liberdade dos donos de imprensa, de não permitir ingerência do governo no negócio da imprensa. Enquanto que liberdade de expressão é uma coisa a ser conquistada ainda. O jornalista que é empregado desta mídia corporativa não tem liberdade de expressão lá dentro, quem tem é o dono do jornal. Liberdade de expressão é você poder dizer o que quiser em qualquer que seja o meio de comunicação – mas você não pode fazer isso em televisão, em jornal, em rádio. Onde você pode dizer? Na internet, mas aí ninguém vai te escutar. Você pode fazer um blog, por exemplo. Aí você tem liberdade de expressão em termos – porque podem processá-lo. Mas a Internet é suficientemente caótica e anárquica para dar ao indivíduo a liberdade de expressão. Porém, o problema da liberdade de expressão não é apenas dizer o que você quer. Em Londres, no Hyde Park, tem um caixote onde o sujeito sobe para dizer o que quiser. Sobe e discursa. Sempre tem um para escutar. Então o sujeito esculhamba a rainha, o rei… dez, vinte pessoas escutam, acham aquilo engraçado, é tradição, e saem. Liberdade de expressão, as pessoas podem ir ali falar.

Isso é liberdade de expressão?

M.S. – Liberdade de expressão hoje é mais que isso. É a possibilidade também de ser escutado, é dizer o que quer num espaço público. E o espaço público é o espaço determinado, formado por mídia, mas formado também por academias, associações, clubes, escolas… Só quem tem liberdade de expressão é quem tem hoje liberdade de imprensa. Portanto, não basta o meio técnico para você falar, tem que constituir sua audiência, o público. Este é o grande problema da Internet hoje. A escuta atualmente é mais difícil do que a fala. As pessoas fazem tanta análise hoje, vão ao psicanalista, em busca de atenção. Pagam para que alguém as escute porque ninguém lhe escuta desta forma. A atenção é a grande mercadoria de hoje. Portanto, o problema não é a livre expressão, é a escuta obrigatória. Existem bilhões de blogs na internet, alguns têm leitores. Você pode escrever a coisa mais importante do mundo, mas ninguém lê.

Para finalizar, como é mesmo aquela história de que o senhor agrediu Adolpho Bloch?

M.S. – Eu morava em Paris e era freelancer da Manchete. Tinha feito uma matéria com Georges Simenon (escritor belga) e fui entregar o texto. Ele (Adolpho Bloch) estava lá no dia. E, neste mesmo dia, corria a notícia de que os árabes haviam destruído aviões israelenses (durante a Guerra dos Seis Dias em 1967). Mas aconteceu o contrário, os israelenses que destruíram a aviação egípcia em terra. Bloch estava muito nervoso, era judeu. Quando entrei, ele quis colocar o nervoso em cima de alguém, era típico dele – no dia que chegava nervoso demitia um contínuo, um funcionário, era assim na empresa. Ele veio, eu disse que estava trazendo uma matéria, e ele falou: “No Brasil nós já mudamos de estilo.” E foi chegando perto de mim. Eu com o texto na mão. E então ele avançou sobre a matéria. Aí, já viu! Quando eu percebi ele estava no ar, eu segurando ele. E olha que Adolpho era pesado. Mas ele tinha uma grandeza nesta sua maluquice. A briga de desfez, um ano depois eu passava por ele no corredor da Bloch (no Rio) e ele me chamava de mestre em russo. Colocava a mão no meu ombro e perguntava se estavam me tratando bem na empresa. Eu dizia que sim, mas que poderia estar ganhando um pouco melhor. Aí ele já tirava a mão do meu ombro (risos). Esta briga, se fosse com qualquer outra pessoa, eu estaria demitido. Se eu estivesse no lugar dele, mandava me demitir. Se fosse com o Roberto Marinho, seria mandado preso.