Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caso Vlado visto de perto

Nenhum outro fato da história do jornalismo brasileiro contemporâneo foi mais estudado do que o assassinato de Vladimir (Vlado) Herzog, diretor da TV Cultura, em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Segundo Exército, em São Paulo. Há pelo menos meia dúzia de livros sobre o tema, com a reconstituição das circunstâncias e depoimentos de protagonistas.

A fartura de material disponível, no entanto, não inibiu Audálio Dantas de dar sua versão em As Duas Guerras de Vlado Herzog (Civilização Brasileira, 406 págs., R$ 39,90), lançado no dia 13.

Audálio tem uma perspectiva única dos eventos. Ele presidia o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo havia seis meses quando, depois de uma escalada de violência da ditadura militar, Vlado morreu na cela em que se encontrava detido. A versão oficial, de que teria se suicidado, foi posta em xeque em nota do sindicato. O texto, publicado por quase todos os jornais, era cuidadoso e não falava em assassinato, mas foi a primeira manifestação pública que não endossava a versão do regime.

A semana seguinte, que culminou com um ato ecumênico na Catedral da Sé, foi tensa e acabou entrando para a história como um divisor de águas. O então presidente Ernesto Geisel, que defendia um processo de abertura política, esteve em São Paulo no dia do culto e, nos bastidores, mediu forças com a linha-dura do Exército. Venceu a parada meses depois, após outro assassinato, do metalúrgico Manoel Fiel Filho, quando demitiu o comando militar de São Paulo.

Audálio reivindica para o Sindicato dos Jornalistas um papel fundamental nessa história. Embora o título mencione “duas guerras” – o menino Vladimir, judeu, fugiu com a família do nazismo –, o livro é sobre o caso Herzog e suas repercussões. Aos 80 anos, Audálio acha que estava devendo esse depoimento, em que faz reparos a relatos publicados até agora.

Em fins de outubro, rejuvenescido por um involuntário corte de cabelo – motivado por uma pequena cirurgia na cabeça, decorrente de um acidente doméstico – ele falou ao Valor em sua casa, no bairro de Perdizes.

Você se refere genericamente a omissões, inverdades e informações tortas em livros sobre o caso Herzog. Quem errou?

Audálio Dantas – Na introdução eu tinha citado alguns exemplos de informações distorcidas. Depois retirei, por conselho da minha mulher, que disse que citar fulano e sicrano ia gerar indisposições e não levaria a nada. Mas alguns desses erros contribuíram de maneira decisiva para que eu começasse a escrever. Julgo-me na condição de ter a versão dos fatos de dentro para fora, da maneira mais correta possível.

O que havia de errado em outros livros?

A.D. – O fato mais importante é que na maioria dos casos o papel do Sindicato dos Jornalistas é omitido. Há um trabalho acadêmico, que não quero citar, publicado originalmente em inglês nos Estados Unidos, que passou a circular nos departamentos de estudos da América Latina das universidades americanas. Nesse livro a autora afirma, por exemplo, que a ABI [Associação Brasileira de Imprensa], e não o sindicato, tinha marcado os protestos e organizado o culto ecumênico. Acho isso grave, absurdo. A sociedade civil se rebelou contra o assassinato, mas esse protesto veio em função de um protesto original que nasceu no Sindicato dos Jornalistas. O papel do sindicato foi fundamental. Basta ver que nenhum outro caso provocou tanta reação quanto esse. O caso imediatamente anterior, a morte do tenente Ferreira de Almeida Piracaia, nas mesmas condições, ficou por isso mesmo.

Você escreve que o ponto de partida para o desmonte da repressão foram os protestos no caso Herzog. Mas isso não teria começado mais tarde, com a troca de comando do Segundo Exército, depois da morte do operário Manoel Fiel Filho?

A.D. – Esse processo começou três meses antes, com a morte do Vlado. Na época, o presidente Ernesto Geisel veio para São Paulo para conter um movimento de quebra de hierarquia. Era isso que o incomodava, não tanto a morte do Vlado. Com a morte do Fiel, o Geisel se sentiu confrontado e demitiu o general Ednardo d'Ávila Mello. Aí se concluiu o desmonte da repressão. O que é notável nesse episódio é não ter havido manifestação pública, nem dos metalúrgicos.

Em 1975, a distensão, a abertura política, ainda engatinhava. De que maneira esse contexto determinou a atuação do sindicato?

A.D. – Se fosse um pouco antes, com o regime fechado, a ação do sindicato teria sido cortada pela raiz. O movimento que resultou no fortalecimento do sindicato foi fruto das eleições parlamentares de 1974, marcada pela reação da oposição. O processo de abertura foi uma obra de engenharia política, a partir da análise de que o regime estava começando a fazer água. Nessa obra, o papel do sindicato foi colocar um tijolinho, não para ajudar no processo conduzido pelos militares, mas contribuindo para a reação popular.

O Partido Comunista, que participava do sindicato, determinava a linha de atuação da entidade?

A.D. – O Partidão não era hegemônico. Por coincidência, o sindicato seguia a linha que eles defendiam. Procurávamos ficar nos limites da legalidade, para preservar a trincheira que o sindicato representava. O que nós, da diretoria, queríamos era que o movimento tivesse uma característica de frente de oposição, que fosse pluralista.

E a pressão mais à esquerda?

A.D. – Era fortíssima e me incomodava muito. Eu estava numa posição absolutamente desconfortável. Se você está caminhando sobre o fio da navalha, tem que ter a consciência de que se não tomar cuidado você se corta. Eu tinha que fazer um esforço diário para vencer o meu medo de ser apanhado. O sindicato era muito visado. O governo achava que na imprensa havia muitos comunistas e que o sindicato era o foco dessa infiltração.

Como era o ambiente nas redações? Havia uma pressão de baixo para cima no sentido de avançar na cobertura?

A.D. – Senti isso quando começaram as prisões de jornalistas, pouco antes do assassinato. Muita gente acha que tudo começou com a morte do Vlado. Não é verdade. Antes houve as prisões que o sindicato decidiu denunciar. Três dias antes do assassinato eu denunciei as prisões, naquele momento eram nove, numa conferência da SIP [Sociedade Interamericana de Imprensa]. Depois, distribuíamos notas com informações. Poucos jornais publicavam, mas os jornalistas tinham conhecimento, e isso determinou uma reação dentro das redações. Os jornais só foram abrir mais espaço depois da morte do Vlado. Alguns jornais, como o Estado, não tinham mais censura prévia. Outras publicações, como a Veja, continuavam censuradas. Acho que com a morte do Vlado também começou a derrubada da censura.

Como avalia a eficiência da comunidade de informações do Exército? Afinal, o próprio comandante achava que você criticava o governo na Folha, assinando com as iniciais A.D., quando o autor dos textos era o Alberto Dines.

A.D. –(Risos) Desde essa época o Dines brinca e me chama de “o verdadeiro A.D.”. Bem, comecei a duvidar da sabedoria da chamada inteligência militar porque, se o comandante não sabia de uma coisa simples assim, é porque a coisa não funcionava tão bem. Mais tarde, confirmei essa suspeita: vendo os documentos do SNI [Serviço Nacional de Informações], em que apareço como militante de seis ou sete organizações de luta armada, cheguei à conclusão de que eles eram totalmente incompetentes ou faziam aquilo só para cumprir as tarefas.

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[Oscar Pilagallo, jornalista, é autor de A Aventura do Dinheiro (Publifolha) e História da Imprensa Paulista (Três Estrelas)]