Na penúltima semana de dezembro, o jornal Extra publicou uma série de quatro reportagens sob o título de “Os mitos do crack”. Dentre as promessas estampadas na capa da edição que inaugurou a série, na segunda-feira (17/12), constava a desconstrução dos lugares-comuns que afirmam que a “maioria dos viciados morre pelo uso da droga” e que a “internação compulsória resolve o problema.”
O que parecia uma tentativa de mostrar um discurso diferenciado frente à cruzada contra o crack visível na mídia hegemônica acabou por ser apenas uma confirmação do que já é dito, repetidamente: o crack destrói a identidade dos usuários, reduzidos a animais em meio a uma violência que não só os afeta, mas também a toda a sociedade. A solução, apresentada na quinta-feira (20/12), é a aplicação de medidas imediatas e autoritárias. Não poderia deixar de ser. A progressão dos assuntos ao longo da semana conduz o leitor por uma realidade de violência e sofrimento que tende a aumentar se não houver uma ação incisiva sobre a epidemia que se alastra.
A reiteração dos mitos
O primeiro “mito” derrubado pela série de reportagens, assinadas pelas jornalistas Paolla Serra e Carolina Heringer, é de que a venda do crack não é rentável para os traficantes. Resta saber se algum dia alguém imaginou que as facções criminosas distribuiriam qualquer droga por caridade. É a lei do mercado, seguida à risca no caso da venda de entorpecentes: se existe um público-consumidor, e se o preço permite pagar a matéria-prima e garantir uma margem de lucros satisfatória, o produto permanece em circulação. Se o crack não movimentasse dinheiro, não haveria motivos para sua venda.
O segundo “mito” do qual se ocupam as reportagens trata da animalização dos usuários da droga. O crack modifica a identidade, faz com que o indivíduo passe a “ter reações animais”, e para manter o vício o usuário se torna capaz de qualquer coisa, inclusive cometer crimes. Novamente não se trata de uma desmistificação, já que esse discurso é cansativamente reiterado pela grande mídia.
Mas os “mitos” continuam a ser desvendados: a droga age em questão de segundos; a droga causa um pequeno apagão cerebral que impede o indivíduo de pensar; sob o efeito da droga, os viciados não conseguem nem mesmo lembrar de seu próprio nome. A droga tem efeitos imediatos, que incluem a perda de peso, alterações na pele e dentes destruídos (talvez fosse o caso de perguntar o que significa exatamente um “efeito imediato”, e se os usuários murcham instantaneamente após usarem a droga uma única vez). O vício em crack é um perigo, para a sociedade e para quem usa, já que mais da metade morre assassinada.
O mito da verdade jornalística
Só resta agora salvarmos a todos. Eles porque não são capazes de pensar, não têm vontade própria e acabam vítimas de sua própria condição animal. Nós porque sofremos com a violência causada pela venda e consumo de crack, mesmo que sejamos inocentes nesse processo (não importa que o narcotráfico seja, na realidade, um problema social complexo, e não a escolha errada de um indivíduo e que, por isso, a inocência do corpo social precise ser relativizada).
A internação compulsória, mesmo que apoiada por 82% dos cariocas, não é a medida mais eficiente. O número de reincidentes é alto nos abrigos: 24% considerando o número total de pacientes e 90% quando só os adultos são levados em conta. Como prometido na primeira capa sobre a série, a última reportagem mostra as alternativas. “Para cariocas, saída está na internação de viciados. Para a Justiça, em penas mais duras.” As únicas duas opções evidenciadas são o acolhimento obrigatório ou o aumento de ações repressivas; e a primeira opção nem mesmo é efetiva.
A prometida desmistificação representa claramente uma estratégia publicitária, uma forma de chamar a atenção para um assunto abordado dezenas de vezes sob a mesma perspectiva. Porém, ao prometer “derrubar mitos”, o jornal se coloca na função de um suposto detentor da verdade, capaz de esclarecer aquilo que foi mal colocado, e de explicar a realidade complexa na qual se relacionam os inúmeros fatores causadores do fenômeno dos entorpecentes. Não foi o que ocorreu nesse caso. A droga continua a ser abordada como um problema isolado, culpa dos traficantes e dos viciados; nada se fala sobre as causas. Eliminar o problema, seja lá de que forma, é a única solução possível. E assim permanecem os mitos.
Leia também
O cultivo científico da ignorância – Sylvia Debossan Moretzsohn
A epidemia voluntária e suas consequências – Luís Fernando Totóli
A fantasia das soluções imediatas – S.D.M.
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[Marco Vito Oddo é estudante de Jornalismo]