Agarrando uma oportunidade, a condenação de alguns políticos que o lideram, o Partido dos Trabalhadores postula novamente o controle da imprensa. Existem graves distorções no jornalismo atual, devendo ele ser tratado com rigor pelos interessados – leitores, ouvintes, telespectadores – na forma e no conteúdo das notícias. Muitas críticas, no entanto, têm origem em personalidades e grupos que desejam impor programas para perpetuar seu poder.
De onde vem a tese de que é preciso regular a imprensa? Lembremos o jurista Carl Schmitt, lido por Francisco Campos, ministro de Vargas que no Estado Novo normatizou os jornais. O alemão afirma que, na busca de formar a mente pública, o audiovisual ameaça o Estado. O poder político deve ter o monopólio dessa técnica. “Nenhum Estado liberal deixa de reivindicar em seu proveito a censura intensiva e o controle sobre filmes e imagens, e sobre o rádio. Nenhum Estado deixa a um adversário os novos meios de dominação das massas e formação da opinião pública.” O Estado, diz Schmitt, deve controlar os meios de comunicação: “Os novos meios técnicos pertencem exclusivamente ao Estado e servem para aumentar sua potência.” O ente estatal “não deixa surgir em seu interior forças inimigas. Ele não permite que elas disponham de técnicas para sapar sua potência com slogans como 'Estado de direito', 'liberalismo' ou um outro nome” (Schmitt em 1932, cf. O. Beaud: Os Últimos Dias de Weimar). A raiz histórica da tese é venenosa.
Jornais deveriam “parecer” diversificados
Na Alemanha preconizada por Schmitt, o nome para a regulamentação da mídia foi a Gleichschaltung (impor à imprensa, de modo uniforme, a ideologia do partido). Em 1933 existiam no país 4 mil diários e 7 mil revistas. O Reich estatizara a maioria das estações de rádio (1925). A Reichs Rundfunk Gesellschaft (Sociedade de Comunicação Radiofônica do Reich) foi posta em 1932 sob os comissários de Franz von Papen, o que facilitou a Gleichschaltung. Tal política foi denunciada em 1938 por Stephen H. Roberts (The House that Hitler Built), mas os olhos estavam cegos para o arbítrio. E vieram a regulamentação do rádio e do serviço postal, a centralização do controle no Ministério da Propaganda, a imposição da conformidade aos funcionários. Foram demitidos os indesejáveis (judeus especialmente). Todos deveriam aceitar os ditames do governo e do partido. Goebbels demitiu os antigos comissários do rádio. Em março de 1940 foram unificados os programas radiofônicos do Reich.
Poucas leis foram necessárias para regular a mídia. Ouvir rádios estrangeiras levaria à pena de morte, segundo o Decreto Sobre Medidas Extraordinárias (1.º/9/1939). Em 1937 existiam 8 milhões de receptores de rádio na Alemanha, ante 200 aparelhos domésticos de televisão dois anos depois. Nos Jogos Olímpicos de 1936, 162.228 pessoas foram às salas que exibiam programas televisionados. O partido e o governo usavam, sobretudo, o rádio e o filme. Ao se impor à mídia, Goebbels jogou a violência física sobre ombros alheios: “Não usamos nenhuma forma de coerção. Se necessária a deixamos para outros departamentos.” Segundo ele, a propaganda (“jornalística”…) sem elos com a cultura é cansativa e ineficaz. Seria preciso uni-la ao entretenimento, batizado com sarcasmo, contra as Luzes do século 18, de Aufklärung. Você não pode sempre bater o tambor, dizia, “porque o povo gradualmente se acostuma ao som e não mais o registra (…) desejamos ser os condutores de uma orquestra polifônica de propaganda”. Os instintos primitivos da massa despertam e são movidos por truques simples e claros.
A mídia regulamentada teve seu papel no extermínio dos judeus, embora o regime mantivesse o segredo como arma. Himmler, discursando em Poznan (4/10/1943), disse que o Holocausto era “um capítulo glorioso da SS que nunca chegou a ser escrito”. A leitura dos jornais sob controle mostram algo diferente. A popularidade de Hitler, é certo, não se deveu à mídia ventríloqua, mas é falso dizer que jornais “independentes” (Frankfurter Zeitung, Berliner Tageblatt etc.) se opuseram ao regime. Paul Scheffer, editorialista do Berliner Tageblatt, narra que sua posição era de marionete sob Goebbels. Os jornais deveriam “parecer” diversificados, mas agir na linha única, imposta pelo partido.
Espinhas e almas quebradas
Muitos leitores cancelaram assinaturas dos jornais. Os periódicos estrangeiros eram lidos com sofreguidão. Nos textos censurados as pessoas aprenderam a ler entre as linhas para compensar a falta de informações. O encanto por Hitler seguia ao lado da impopularidade do seu partido. Segundo I. Kershaw (O Mito de Hitler: o culto do führere a opinião popular), os alemães atribuíam ao führer os sucessos anteriores à guerra. A “corrupção, a imperícia administrativa e problemas de suprimento não se deviam a ele, mas ao partido”. A mídia fantoche fazia do líder um inimputável. Os jornais regulamentados apresentavam-no como a pessoa que acabara com o desemprego, vencera a corrupção, levara a Alemanha ao poder europeu. Os fracassos eram atribuídos aos inimigos, como os judeus. (Informações preciosas encontram-se em Bruce A. Murray, Framing the Past: The Historiography of German Cinema and Television.)
Virada a página, no mundo soviético, idênticas loas ao Pai dos Povos, igual servilismo imposto à imprensa.
E hoje, no mundo e no Brasil? Em greve inédita contra a censura, um jornal do próprio governo chinês (Global Times), em texto dos editores afirma: “A realidade é que antigas políticas de regulação da imprensa não podem continuar como estão. A sociedade está progredindo e a administração deve evoluir” (BBC, 7/1/2013). Depois do nazismo, do Pravda (o jornal mais mentiroso da História), das ditaduras Vargas e de 1964, a sociedade evoluiu, salvo para os que comparam sua ideologia aos oráculos. Os deuses exigem espinhas e almas quebradas.
***
[Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor, entre outros livros, de O caldeirão de Medeia (Perspectiva)]