Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma cobertura jornalística contraditória

Nas últimas semanas, a celeuma envolvendo a vacância na chefia do poder Executivo decorrente do tratamento contra o câncer a que Hugo Chávez foi submetido em Cuba inseriu a Venezuela no centro das atenções dos noticiários no Brasil. Não se trata de novidade. Desde que Chávez assumiu a presidência venezuelana na década de 1990, o país passou a ser objeto de frequentes reportagens realizadas pela grande mídia brasileira.

Essa, no geral, não cessa de incluir o povo venezuelano como vítima de um regime autocrático, presidido por ditador desafeto de qualquer espécie de diálogo e executor de políticas públicas ditadas por caprichos pessoais. Até mesmo o vice-presidente não é referido como o legítimo sucessor da chefia do Executivo, mas simplesmente como o homem designado pessoalmente por Chávez para ocupar a liderança política do país na sua ausência.

Ocorre que a mesma grande mídia tem sido compelida a divulgar fatos que, por si sós, elidem todas essas conclusões. Por exemplo: as eleições presidenciais do ano passado e a performance do líder opositor Henrique Capriles (detentor de não desprezíveis 45% dos votos válidos) ou ainda as críticas externadas pela imprensa empresarial ao impasse na sucessão decorrente da doença de Chávez e a solução para o caso proporcionada pela cúpula do Judiciário do país, em 2013. Tudo isso assegurado, não pela vontade pessoal de um ditador, mas pelos dispositivos da Constituição de 1999, aprovada em referendo por mais de 70% dos cidadãos.

Luta pela hegemonia

Resta, então, questionar o motivo de a mídia insistir na existência de autocracia num país onde vigoram institutos inerentes a um Estado Democrático de Direito – eleições periódicas, oposição, imprensa livre, Judiciário autônomo e respeito a normas constitucionais. Certamente, o fundamento desse quadro não repousa nas imperfeições do sistema, até porque a mesma imprensa não coloca em dúvida a democracia de países como os Estados Unidos da América, que mantêm a prisão semimedieval de Guantánamo, ou como o Brasil, cujo presidencialismo de coalizão permite a manutenção no poder de considerável parcela dos grupos dominantes na ditadura militar pós-1964.

Na realidade, tal cobertura eminentemente contraditória tem por fundamento o projeto socialista do agrupamento político liderado por Chávez. Pouco importa o quanto este projeto é factível sob o predominante capitalismo globalizado. Uma simples promessa governamental de superação do domínio do capital em alguma localidade do mundo – ainda mais em pais tão próximo do Brasil – já leva as corporações midiáticas a acender o sinal de alerta e a empregar toda a propaganda necessária para eliminá-la de pronto, cortando o “mal” pela raiz.

Eis, em suma, um típico caso que revela a inserção da mídia empresarial na função de comissária do grupo dominante para a manutenção da hegemonia, tal como escreveu o sempre atual Antonio Gramsci.

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[André Augusto Salvador Bezerra é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam/USP), juiz de Direito em São Paulo e membro da Associação Juízes para a Democracia]