Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo ou a arte do grotesco?

O que há em comum entre tragédias como o deslizamento no morro do Bumba, o massacre na escola em Realengo e o incêndio em Santa Maria? A grotesca cobertura midiática. Sensacionalista, sedenta por sangue, louca pelo melodrama, desesperada pelo furo que normalmente consiste em imagens degradantes, cenas de humilhação, desespero e a miséria humana.

O jornalismo de verdade costuma ficar em segundo lugar. Isto quando sequer transparece nas páginas que oscilam entre pingar sangue ou verter torrentes de lágrimas colhidas a dedo para criar um quadro melodramático desnecessário e vergonhoso. A mídia busca respostas fáceis e quando não as encontra repete a história até ser possível encontrar uma brecha para fabricar suas próprias verdades. Não importa se a tragédia está acontecendo ou se é o aniversário dela – de 1, 10 ou mesmo 100 anos: o relevante é apenas espremer todo o sofrimento que puder.

Imagens de corpos carbonizados ou machucados, closes vergonhosos de pessoas sentindo a imensa dor da perda, vídeos com o momento exato de uma execução, a insistência nas perguntas-clichê nos momentos de maior dor de familiares ou mesmo vítimas: “Como você está se sentindo?”, “O que você pensa disso ou daquilo?”, “Qual a sensação?”

Direitos humanos

Sensação, sentimentos ou ideias que, infelizmente, a mídia não tem. A falta de originalidade e o amálgama geral do prazer pelo grotesco permeiam a imprensa brasileira. Quem em sã consciência acredita que mostrar os corpos de centenas de vítimas de uma tragédia é, de fato, jornalismo? Quem acredita que assediar parentes de vítimas em seu momento de dor é fazer jornalismo investigativo? O jornalismo brasileiro despe-se de humanidade seja para noticiar chacinas contra jovens negros das periferias de São Paulo, seja para “denunciar” massacres contra populações indígenas ou sem terras, ou para noticiar e cobrir tragédias de grandes proporções como o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), que causou a morte de mais de 230 jovens.

Em um primeiro momento apontaram os dedos midiáticos para os seguranças. Depois, para a “fatalidade” do ocorrido. Para a banda que usou material pirotécnico e começou o incêndio. Depois para teorias mil, comparações e para falhas na legislação, na fiscalização… Mas e os donos do local, estabelecimento que funcionava com permissão judicial provisória, sem estrutura alguma para garantir a segurança de milhares de frequentadores? E o prefeito da cidade, reeleito, responsável direto por fiscais e pela aplicação das leis no município? E o poder público que deveria zelar pela segurança dos cidadãos?

Mas não. Respostas fáceis são melhores. Apontar os dedos para os mortos, para o tempo, o espaço, o acaso, é muito mais fácil do que bater de frente e fazer jornalismo de verdade. O tom é sempre o mesmo. Sensacionalismo puro. A completa desumanização de familiares e vítimas que são mero produto para o entretenimento da massa. A cobertura de TVs e jornais em nada difere dos policialescos de péssima qualidade que diariamente demonstram que direitos humanos é algo a ser desrespeitado, que só serve para “bandido” e que bom mesmo é ver o sangue correr.

Show da vida

E o sangue corre. Sempre corre.

Em algum momento um jornalista questiona timidamente por que vemos tanta desgraça, por que há tanta violência? Mas em momento algum questiona a si e a seus colegas de profissão que, por vontade própria ou pressão dos diretores, vendem a morte, a dor e o sofrimento como itens típicos de mercado de esquina. Não é apenas a violência que aumenta, mas o espaço que ganha a cada dia na TV, nos jornais, nas revistas…

No caso de Santa Maria, convidam especialistas para falar de legislação, de tragédias, de fatos semelhantes… Tudo intercalado com rostos emocionados, vozes que tremem levemente frente às câmeras, um olhar de indignação semelhante ao usado em tragédias anteriores e muitas imagens chocantes, de desespero, de desalento.

É o show da vida, o show da realidade formatada para a audiência acostumada a reality shows e big brothers que não escondem nada, exceto a verdade.

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[Raphael Tsavkko Garcia é blogueiro e jornalista, formado em Relações Internacionais pela PUC-SP e mestre em Comunicação]