O primeiro meio de comunicação na Alemanha a anunciar a tragédia em Santa Maria foi o jornal Süddeutsche Zeitung (ver aqui), que também noticiou ter a chanceler Angela Merkel prestado suas condolências à presidente Dilma Rousseff. No noticiário noturno de maior audiência – o Tagesthemen, da rede aberta ARD – a pauta foi a primeira manchete no domingo (27/1) com imagens da GloboNews e tradução em off para o alemão das notícias das agências.
Na reportagem não foi mencionado que o alvará de funcionamento da boate Kiss estaria vencido desde agosto último, num horário em que isso já era motivo de calorosa discussão na TV brasileira e já havia sido noticiado no Globo Notícia. Também não foi informado que a única porta de saída foi fechada pelos seguranças, para evitar que pessoas saíssem sem pagar.
O leite derramado
Durante toda a tarde de domingo (27/1), a GloboNews entrevistou chamados experts sobre a tragédia enquanto ainda não era conhecido o número de mortos e feridos. O convidado, afoito, nem esperava o âncora terminar as perguntas e, sem trazer qualquer relevância em seu depoimento, dava palpites sem estar de posse dos chamados “fatos duros”, tomando tempo precioso de transmissão e muito da paciência do telespectador ansioso por notícias. Outros depoimentos, como o do prefeito de Santa Maria, não acrescentaram praticamente nada, já que também ele não estava munido de informações concretas para poder fazer uma avaliação útil ao público que acompanhava os desdobramentos da tragédia.
O que confere legitimidade a um canal de notícias não é o nome, nem mesmo o slogan “nunca dorme”, e sim a consistência na rápida divulgação e análise dos fatos. A análise da GloboNews durante toda a tarde de domingo foi enfadonha, redundante, além do inflacionado número de convidados no estúdio.
Já a edição do Bom Dia Brasil de segunda-feira (29/1) divulgou os fatos de forma compacta e eficiente, além da participação do jornalista Alexandre Garcia, que fez uma reivindicação óbvia, mas necessária: para que as leis sejam ser cumpridas no país, esses espaços públicos têm de ser controlados. Pode ser óbvio, mas não o é em um país como o Brasil, que tem arraigado em sua cultura a incapacidade de praticar medidas de prevenção.
Quando a tragédia acontece e Inês é morta, então todos correm rapidinho para o local. A ganância pelo dinheiro, a falta de ética, a certeza da impunidade e o uso de mão de obra barata e sem qualificação causam mortes que poderiam ser evitadas, como a dos 55 passageiros do Bateau Mouche no réveillon fatídico de 1988-1989 e, agora, os mortos da boate Kiss de Santa Maria (RS).
O tablóide Bild
Abusando de grandes fotos com alto teor sensacionalista, o tabloide Bild postou na primeira página na edição digital de segunda-feira (28/1) a foto de um casal. No restante da matéria, a repetição de várias fotos de impacto emendadas com uma mistura de tradução de agências de notícias: Inusitadamente, somente o Bild divulgou a razão por que a única porta de saída da boate estava fechada (ver aqui).
Como diz um ditado em alemão, “Andere Länder, andere Sitten” – “outros países, outros costumes”. A Alemanha é um país culturalmente fundado na postura de prevenção, nos mínimos detalhes. Até mesmo quando alguém assume um posto de trabalho, existe um curso de uma semana para se preparar, como sempre, para o pior. A diferença gritante entre as duas culturas é que na Alemanha se evita de todo o modo que aconteça o pior e, quando acontece, a culpa, se torna algo insuportável. No Brasil, infelizmente rege a mentalidade do “aqui e agora” e de que o futuro “a Deus pertence”. Brasileiros apáticos frente à TV tomam parte do culto da tristeza coletiva, incluindo o sentimento de impotência de voyeurs da tragédia.
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[Fátima Lacerda é jornalista freelance, formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]