Como fruto de meu último artigo (“Regulamentação da mídia“), recebi uma torrente de insultos anônimos em meu endereço eletrônico. A reação prova a tese: os autoritários ignoram a fronteira do coletivo e do particular. Em vez de responder publicamente, eles ameaçam e insinuam retaliações. Volto ao tema sob outro ângulo para melhor determinar o que dele penso.
A imprensa surge com o Estado moderno. O mesmo ocorre com as táticas do poder para impedir a sua livre expressão. A importância dos panfletos políticos e religiosos é certa nos séculos 16 e 17. Basta recordar os libelos puritanos e textos como Le Reveille-Matin des François, que ampliaram rebeliões aristocráticas ou populares. No plano oposto surgem os jornais controlados pelo governo, criados para popularizar o poder oficial.
Richelieu (cardeal, primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642) já domina o maniqueísmo da propaganda. “Aos que qualificavam a razão de Estado de 'razão do diabo' ou 'razão do Inferno' os panfletários de Richelieu replicam acusando-os de adotar 'a mais negra Teologia do Diabo'“ (Thuau, Etienne: Raison d'État et Pensée Politique à l'Époque de Richelieu).
Thuau analisa estratégias cuja doutrina se resume em “governar e fazer acreditar” pelo controle estatal da palavra escrita. Diz ele: “É uma verdade reconhecida que a autoridade é inseparável das ideologias, dos mitos e das representações que os homens formam a seu respeito. O poder repousa na aliança do constrangimento e das crenças”. O autor recorda Gabriel Naudé nas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640): para manter a governabilidade o príncipe seria obrigado a mentir ao povo, “manejá-lo e persuadi-lo com belas palavras, seduzi-lo e enganar pelas aparências, ganhá-lo e colocá-lo a serviço de seus alvos por pregadores e milagres sob pretexto de santidade, ou por intermédio de bons escritores, silenciando os livrinhos clandestinos e manifestos, para levá-lo pelo nariz e fazê-lo aprovar ou condenar, só com a etiqueta da sacola, tudo o que ela contém”.
Sigilo cúmplice
O marketing político inicia ali a carreira cujo ápice ocorre sob Joseph Goebbels (ministro da Propaganda de Adolf Hitler). Controlar a imprensa é tarefa da grande ou mesquinha razão de Estado. Se o rótulo tem forma adocicada (“regulamentação social”) ou ácida (censura), não importa. O alvo é calar a dissonância, silenciando críticas aos palácios e adjacências.
Richelieu reúne os auxiliares para examinar documentos oficiais, definindo a forma pela qual eles deveriam surgir como “notícias” no setor público, com o disfarce necessário. Ele já conhece a arte de reescrever a História e seus próprios textos. Os procedimentos usados no totalitarismo germinam no Estado absoluto. Ao reeditar seu discurso aos Estados em 1614, o cardeal modifica-o porque não coincide mais com sua nova política. Aqui não temos o único aspecto na genealogia que vai do Estado absoluto ao totalitarismo. Os “processos políticos” de Richelieu transformam os juízes em instrumento de terror contra os adversários. Para aquilatar a extensão e a profundidade dessa herança temos o livro de Hélène Fernandez-Lacôte Os Processos do Cardeal Richelieu, Direito, Graça e Política sob Luís, o Justo.
A função política ou econômica da imprensa, revolucionária ou governista, nem sempre suscita análises compreensivas. Basta recordar, no século 20, o crítico Karl Kraus. Em artigo intitulado A imprensa como alcoviteira, Kraus compara a jovem prostituta e o jornalismo oficialista, da Bolsa ou dos Palácios. A rameira seria moralmente superior ao que vende sua pena, pois ela “nunca sugeriu, como ele, assumir altos ideais”. (Uso a tradução italiana, Morale e Criminalità.) A imprensa, com suas virtudes e seus defeitos, longe de ser odiada apenas pelos que agora se vendem ao governismo brasileiro, tem uma história densa e contraditória.
Recordo o autoritarismo dos que visam a impor silêncio a quem foge ao controle da norma formatada pelo marketing político e ideológico. Carl Schmitt, na luta contra a livre imprensa, chama os democratas de “classe discutidora”, retirando o epíteto de Juan Donoso Cortés, autor do Discurso sobre a Ditadura, que inspira o fascismo. E também alimenta as ditaduras do século 20 na América do Sul e no Brasil. Com os tanques a discussão termina, vem o golpe de Estado “redentor”. Mas nem todo golpe é cruento. A maioria é feita no silêncio dos gabinetes, nos acordos espúrios, nas alianças nefastas cujo nome ainda é “governabilidade”. Quem aplica golpes eficazes conta com o sigilo cúmplice de todos, inclusive dos governados. É aí que os periódicos incomodam. Num país movido pela propaganda, desde a era Vargas com o DIP até hoje, a popularidade dos governantes é alvo perene, obtida à custa de ouro.
Ilhas de crítica
A mídia passa hoje por graves modificações. Se na cultura impressa existiu a figura do pedante, hoje na internet o pedantismo assume amplitude inaudita, unido à repetição de slogans e aos ataques às subjetividades que defendem posições adversas ao poder. Tudo indica que levará tempo para que a humanidade alcance uma síntese nova na ordem teórica e prática. Os jornais vivem uma situação inédita, com o aumento inusitado da comunicação eletrônica. As teses sobre a regulamentação da mídia, no Brasil, seguem a via coberta de ódio e dogmatismo.
Monopólios devem ser tratados com leis específicas, não podem servir de pretexto para impor ao público a visão de partidos ou seitas. Alguns veículos de comunicação, sobretudo na internet, se arrimam com ajuda oficial, reduzem seu papel à propaganda do governo e ao afogamento da crítica. Como se fosse destino, eles retornam ao tempo em que Richelieu pagava a jornais e jornalistas para combater os adversários do Estado.
Sobram ilhas de crítica e rigor intelectual na imprensa, mas é possível prever tempos escuros para as mentes lúcidas e honestas. Quem viver verá.
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[Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor, entre outros livros, de O caldeirão de Medeia (Perspectiva)]