Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em defesa da cobertura

Deu no New York Times que a imprensa brasileira transformou a tragédia de Santa Maria num reality show. O artigo “When the music stopped” foi escrito pelo jovem escritor gaúcho Antônio Xerxenesky. Nele, o autor afirma que “uma multidão de jornalistas apontava câmeras no rosto de uma mulher que acabara de perder o filho e exigiam saber como ela estava se sentindo”. Muitos amigos jornalistas compartilharam o link desse texto nas redes sociais. Eu ainda não constatei nada que se assemelhasse a um “paredão” em tudo o que li publicado em jornais e portais noticiosos. Houve tentativas, mas foram exceção à regra.

Por um instante, vamos imaginar que subitamente todos os jornalistas parassem de publicar relatos sobre o incêndio na boate Kiss. Afinal, é preciso respeitar a dor das famílias, disso ninguém discordará. O que aconteceria conosco, vítimas secundárias dessa tragédia, se fôssemos privados da informação? Estaríamos à deriva, provavelmente perdidos em sentimentos inexplicáveis e incompreensíveis – de que a vida é apenas um sopro.

Imaginem agora se o New York Times tivesse tomado essa mesma decisão no 11 de Setembro. Eles e o resto da imprensa norte-americana não fizeram isso. Estamparam diuturnamente o rosto das milhares de vítimas, expuseram o sofrimento das famílias, lembraram o heroísmo dos bombeiros e anônimos, reverberaram a dor americana que foi midiatizada durante meses.

Quando o jornalista deixa de ser o produtor exclusivo da informação, o único emissor, e quando demandamos cada vez mais notícias em tempo real para alimentarmos as redes sociais, a corrida pela notícia se torna insana. Não havia jornalistas que testemunharam o incêndio na boate Kiss. Mas havia, durante as horas trágicas, diversas pessoas com celulares na mão, capazes de produzir notícia. Algumas delas tuitaram o último pedido de socorro antes de morrerem.

Surfar na desgraça alheia

Já cobri tragédias recentes como repórter e sei o quanto essa função vive no fio da navalha. De um lado, a pressão inclemente e, não raras vezes, irracional dos editores. Até procurava entender a cobrança alucinada da Redação por novos ângulos, personagens e histórias que recheassem as páginas programadas para o dia seguinte.

Cabe ao repórter ignorar os pedidos surreais. Já, do outro lado, o jornalista que vai a campo também é um ser humano que sente inúmeras dificuldades para trabalhar em situações tão tensas como essa. Em duas décadas de profissão, vi colegas insensíveis, sim, mas em número bem inferior ao daqueles que se sentiam muito mal por participarem desse tipo de cobertura. É fácil, a partir da plateia das redes sociais, criticar nossos colegas. Prefiro elogiá-los.

Quando um veículo da imprensa decide dar espaço para que múltiplas vozes se manifestem sobre um caso, e isso está ocorrendo claramente na tragédia de Santa Maria, ele está fornecendo elementos para que se construa uma verdade mediana. Trata-se de uma aposta de que exista, entre quem vai receber a notícia, um sujeito interpretante capaz de elaborar sua própria opinião. O que tenho visto nessa cobertura da imprensa é que ela está correta. Não perfeita, mas diante das circunstâncias, correta. Eu me sinto suficientemente bem informado sob vários aspectos da tragédia.

Mas em relação ao jornalismo opinativo, não tenho essa mesma convicção. Li opiniões e comentários despropositados e politizados demais. Alguns autores tentaram associar a tragédia a uma suposta cultura brasileira que seria leniente à corrupção, ao jeitinho e à falta de controles. Outros disseram que estamos maquiando o Brasil para a Copa, mas o verdadeiro “lado B” do país está simbolizado nas centenas de jovens mortos no Rio Grande do Sul. O colunista Fernando Rodrigues, na Folha de S.Paulo, escreveu que os políticos de Brasília tentaram surfar na desgraça alheia, propondo agora leis a jato para prevenir futuras tragédias. Não ele, mas alguns poucos editorialistas, (des)articulistas e até cartunistas também quiseram se aproveitar da dor das famílias para criticar o governo de ocasião.

Sentimento vingativo

Não podemos esquecer que a opinião pertence ao domínio da crença, todos nós temos direito a ter uma. Só que a opinião não é a expressão de uma verdade do mundo, já dizia o linguista Patrick Charadeau, mas está ligada a um julgamento hipotético de um dado assunto. Somos contra ou a favor de algo. Cada um de nós, produtores e receptores da informação, aderimos de maneira não racional às crenças vigentes.

Muitas das críticas ao papel da imprensa nessa cobertura me parecem revestidas de um sentimento vingativo, de apontar o dedo na ferida, de revirar ressentimentos recentes. Ao contrário do julgamento do mensalão, no qual parte substancial da imprensa tentou formatar a opinião pública segundo o que ela já havia sentenciado, na tragédia de Santa Maria isso não vem ocorrendo. Os deslizes estão longe de se traduzir num Big Brother.

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[Eduardo Nunomura é jornalista e mestre em Ciências da Comunicação pela USP]