Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vendem-se imagens

Algumas horas após o fim do incêndio que tirou a vida de mais de 230 pessoas na boate Kiss, localizada na cidade gaúcha de Santa Maria, as emissoras de televisão já tinham posse de uma infinidade de tramas e cenas para ocupar suas programações. No início daquela noite dominical, estava com o controle remoto em mãos, mirando o aparelho da cozinha, com a família. Após tanto vagar meu olhar por diversas versões da tragédia, parei em um canal qualquer, por um motivo que não sei ao certo – provavelmente, mais pelo cansaço do que pelo interesse. Neste momento, pude ver o apresentador lançar meia dúzia de clichês sobre o ocorrido, pedindo justiça e oferecendo conforto aos parentes das vítimas. Até aí, tudo bem. O problema é que, no instante seguinte, em seu momento de “improviso”, o showman deixou escapar uma outra preocupação: “E o Brasil, como fica a imagem de nosso país a pouco tempo de sediar uma Copa do Mundo?” É daí que vem meu incômodo.

“Quer dizer que ele está preocupado é com a… imagem?” Sim, por incrível que pareça, é isso mesmo! E, infelizmente, ele não está sozinho. A mídia, sobretudo, tem se preocupado em excesso com a imagem, a ponto de transformá-la em mercadoria. O resultado disso é o que testemunhamos agora, poucos dias depois do ocorrido lá no sul: produções quase hollywoodianas, feitas com a ambição de resgatar o sofrimento das vítimas, repórteres questionando parentes desolados com perguntas como “E agora, o que o senhor fará após perder seus filhos em uma tragédia como essa?”, enquanto cinegrafistas caçam, impiedosamente, qualquer lágrima que venha a escorrer dos olhos enrubescidos de tristeza e muito mais – tudo por uma boa imagem!

Ausência de respeito

Não nego a importância dos veículos de comunicação em situações como esta. Através deles, é possível divulgar informações sobre formas de ajuda a vítimas, dar voz aos envolvidos para que prestem esclarecimentos e estimular debates sobre tópicos relevantes, além de denunciar os riscos à segurança e as condições precárias de alguns estabelecimentos, apenas para citar poucos exemplos. No entanto, é nítido o exagero praticado por parte destes veículos, algo que termina até por ofuscar todo o seu potencial benéfico.

Quando a mídia prioriza o uso comercial de imagens trágicas, subestima algumas sérias consequências, como o comprometimento de investigações – através da divulgação de conclusões precipitadas e infundadas, por exemplo – e a possibilidade de colocar em risco a vida de pessoas envolvidas – aquelas que sofrerão com os juízos equivocados. Mal similar ocorre quando agem como se tivessem tanto o poder de proteger os cidadãos como o de fazer justiça, quando, na verdade, não têm – e tampouco deveriam ter – nenhuma destas capacidades.

Portanto, não é apenas à segurança de nossas casas noturnas que temos que dirigir nossa atenção. É preciso questionar o real papel do jornalismo em trágicos eventos, como o de Santa Maria, além de refletir sobre esta paixão ou vício que temos em consumir sofrimento – o dos outros, acima de tudo! Não é possível que a mídia tenha que viver disso. Não é possível que nós tenhamos que viver disso.

Por trás desta nossa consideração travestida de humana, é possível que haja um enorme vazio deixado pela ausência de respeito perante os outros.

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[Paulo Mortari é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, São Paulo, SP]