Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Annette Schavan: ex-doutora, ex-ministra e plagiadora

Desgraças crônicas não viram notícia. Eventos agudos, sim. Por isso, a única chance que uma desgraça crônica tem de aparecer na imprensa e fazer barulho é se, num golpe de sorte, sofrer o abalo de um evento agudo. Os jornalistas costumam chamar isso de gancho.

Há um bom tempo eu esperava por um gancho desses. Annette Schavan, ministra alemã da Educação e da Pesquisa, que deveria dar exemplo de boa prática científica, fez uso de plágio em sua tese de doutorado. O mais inquietante da história é que a tese foi concluída há 33 anos, sem os recursos eletrônicos de copia e cola, sem internet, mas igualmente sem as ferramentas de busca e de controle de plágio hoje disponíveis. Foi graças ao trabalho de um blog anônimo – http://schavanplag.wordpress.com/ – que a denúncia tomou força e levou à destituição do título de doutora e à entrega do ministério.

Não é a primeira vez neste país que um político tem a carreira maculada pela descoberta de plágio acadêmico. Karl-Teodor zu Guttenberg, ex-ministro da Defesa, é o mais célebre deles – e seu caso já foi citado neste Observatório (ver “A indefensável tese do ministro da Defesa”). Sua história repetiu-se, nos últimos dois anos, com os parlamentares Silvana Koch-Mehrin, Jorgo Chatzimarkakis e Bijan Djir-Sarai. Eles deixaram de ser doutores, mas continuam, cada um a seu modo, insistindo no poder. No escândalo da senhora Schavan, entretanto, há agravantes que não podem passar desapercebidos. Mesmo documentado e comprovado o plágio, ela alega inocência e mantém o propósito de recorrer da decisão da Universidade de Düsseldorf que lhe revogou o título de doutora. No discurso de renúncia, transmitido ao vivo nos principais canais de televisão, o tom foi sóbrio, convincente, impecável, inabalável. Por fim, ainda mais desconcertante foi a aparição da chanceler Angela Merkel, sua copartidária, quando lhe declarou apoio incondicional e lamentou a interrupção de um mandato tão valoroso para a educação e ciência alemãs.

Obra não tem tamanho

Da poltrona da minha casa, mera telespectadora, eu me contorcia de indignação. Não apenas pela atuação de tais personagens políticas num teatro do absurdo, mas por ver calada uma imprensa que se pretende inteligente. Minutos após o discurso, o site da revista Spiegel publicou um comentário intitulado “Uma renúncia correta – infelizmente”. A página brasileira da agência Deutsche Welle limitou-se a descrever os detalhes do processo. O Frankfurter Allgemeine concentrou-se em apresentar a sucessora de Schavan. Sem coragem ou familiaridade com o repertório acadêmico, faltou aos jornalistas dizerem que a desonestidade científica é, sim, uma falta grave.

E essa é a desgraça crônica da qual pretendo falar. O plágio é uma cultura, é a disseminação de uma má ética, de uma fantasia que faz com que gente inautêntica exerça um poder real. Os falsos doutores são cara-de-pau, pois se creem merecedores do título e das honras dele decorrentes: carreira, publicações, visibilidade, sucesso. Não se dão o tempo lento da leitura e da escrita e, por isso, jamais conhecerão o prazer de se saberem autores. Jamais serão visitados pela redenção, alegre e jovial, reservada apenas aos geradores de uma obra. Bilhete, texto jornalístico ou trabalho de doutorado, obra não tem tamanho, desde que seja verdadeira.

Da caixa de correio ao cartão de crédito

Não sabemos quantos doutores de araque existem espalhados mundo afora. O hábito de plagiar, de levar fama graças à obra alheia, de não citar fontes, é muito antigo. Somente há poucos anos, no entanto, a tarefa de desmascarar tais imposturas tornou-se profissão de fé. Não é pequeno o número de caçadores de plágio que passam a gozar de status profissional, contratados por políticos, empresas e universidades. Eis aqui uma atividade em pleno desenvolvimento.

Na Alemanha, em especial, a onda de desnudamento de teses plagiadas é sintoma de um mal maior, de uma desgraça crônica do imaginário alemão: o status do título acadêmico. Neste país, a abreviação “dr.” torna-se parte do nome de seu portador, que passa exibi-la como atributo de distinção: na caixa de correio, na cédula de identidade, na carteira de habilitação, no cartão de crédito e onde mais couber. As duas pequenas letras são, na verdade, cobiçados acessórios para quem ambiciona poder.

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[Danielle Naves de Oliveira é jornalista, doutora em Ciências da Comunicação]